Durante a infância, uma bronquite me impedia de brincar na rua.
A alternativa era ficar em casa, vendo televisão, numa época em que ainda não havia dublagem de filmes estrangeiros, só legendas.
Aquelas figurinhas miúdas, que chamavam de letras, eram um empecilho ao entendimento: eu precisava decifrá-las!
Aos cinco anos de idade resolvi protestar contra o analfabetismo natural: “Quero ir à escola!”.
Meus pais disseram que ainda era muito cedo, pois a idade mínima para a escola pública era de sete anos.
Porém, diante de minha postura irredutível, apelaram para a criatividade:
Recebi uma malinha e a Cartilha Sodré – que já haviam servido aos meus irmãos -, um caderno do MEC, um lápis e fui matriculado na “Escola do Seo Manoel”, com direito a ditados, leituras e lições de casa. Meu pai “lecionava” enquanto almoçava!
De repente, as letras passaram a fazer sentido! Sopa de letrinhas passou a ser meu prato preferido! Nem bulas e embalagens escapavam de minha “fúria revolucionária”!
Coincidentemente, a partir daí a bronquite escafedeu-se!
Às figuras uniram-se os balões de texto, que deram lugar às imagens com textos de rodapé; que foram substituídos pelos textos com figuras em páginas intermediárias, até que, finalmente, bastaram os textos: a imaginação já se tornara mais poderosa do que o traço dos ilustradores ou fotos!
A alfabetização me libertou, e a imaginação me deu asas!
Assim, livre, jornais e livros passaram a fazer parte indissolúvel de minha vida.
Neles, eu lia o que ouvia no rádio e via na televisão, outros companheiros inseparáveis.
No entanto, essas múltiplas fontes de informação mostravam ora coerência ora discrepância.
As diferenças geravam dúvidas, desconfiança ou curiosidade, que estimulavam ao raciocínio.
Com isso, as conclusões pessoais começaram a moldar a arte final desse processo, mutável em função de novos argumentos plausíveis.
A consciência não deixa escravizar, ou, no mínimo, rejeita a escravidão!
Será por isso que só a quarta parte da população brasileira é plenamente alfabetizada?
Bem, frações pequenas não sugerem dramaticidade. Que tal assim:
Três quartos dos brasileiros são analfabetos plenos ou funcionais, ou seja, não entendem o que leem e mal sabem expressar suas ideias, assim sujeitos a respostas variantes e humilhantes, do tipo “cale a boca”, que só morreu para quem pode mais.
Isso não quer dizer, absolutamente, que 25% são expertos e 75% são tolos, pois há uma enorme diferença entre ignorância e estupidez.
Mas de uma coisa não há dúvida: a alfabetização, a informação e o senso crítico são os antídotos para a ignorância, e os principais instrumentos para o desenvolvimento autônomo de um país!
Por isso o acesso à informação precisa ser livre, e quem informa precisa ter honestidade intelectual.
A sociedade precisa do jornalismo investigativo, sério, independente e responsável para alimentá-la de dados que permitam análise e conclusão.
Isso não deve ser cerceado, mas incentivado e assegurado pelas instituições, que também devem promover e prover educação e cultura para o povo, sem viés ideológico ou doutrinário.
Analfabetismo, ignorância, segredo e censura lembram a clássica figura dos três macacos: “Não falo! Não ouço! Não vejo!”.
Privados desses sentidos, o não pensar é uma consequência quase inevitável!
É quando o povo, em vez de macacos mudos, surdos e cegos, vira massa de manobra: cordeiro, sacrificado todos os dias no sacrílego altar da mentira, violência e da corrupção institucionalizadas!
A democracia nunca existirá e ninguém jamais poderá se arvorar democrata enquanto promover, ignorar ou aceitar essas circunstâncias!
Adilson Luiz Gonçalves é escritor, engenheiro, pesquisador universitário e membro da Academia Santista de Letras
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