Cidades inteiras cabem em um caderno | Boqnews
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Opiniões

22 DE SETEMBRO DE 2025

Cidades inteiras cabem em um caderno

Alessandro Lopes

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Abrir um caderno é como abrir a própria cidade. Em cada página pode caber uma rua esquecida, uma praça viva, uma promessa suspensa.

Para o Urban Sketcher não existe detalhe irrelevante: fachadas, pessoas, silêncios e até ruínas prematuras, tudo se transforma em desenho.

É nesse gesto que cabem cidades inteiras, guardadas não apenas nos monumentos, mas também nos vazios urbanos que desafiam o tempo e a memória coletiva.

Cada traço é testemunho. A linha que treme acompanha a respiração do instante e revela mais do que colunas ou janelas: mostra o tempo interrompido, o intervalo em que a vida deveria ter acontecido.

O olhar do desenhista não aceita o vazio mudo. Ele o converte em narrativa e da narrativa faz nascer convocação.

Muitos esqueletos de concreto se erguem como ruínas sem passado.

Não são fruto da erosão dos séculos, mas da pressa quebrada, do mercado que falhou, da promessa esquecida.

São muros que não abrigam, lajes que não sustentam, janelas que nunca verão amanhecer. Pesam não por sua matéria, mas porque não guardam memórias. Guardam apenas expectativas frustradas.

É aí que o olhar do desenhista se torna essencial. Enquanto a cidade se acostuma com o abandono, a criança cresce acreditando que a ausência é paisagem.

Os vizinhos aprendem a conviver com fachadas ocas. O Urban Sketcher recusa a naturalização. Ergue o lápis e devolve visibilidade ao que se queria oculto.

Esse gesto é cuidado. Não ergue muros, mas sustenta vínculos.

Recorda que proteger a cidade contra o inacabado é também proteger a confiança que mantém a vida coletiva em movimento.

O valor de uma cidade não está no número de obras iniciadas, mas nas histórias que ela consegue concluir.

Alguns lugares já compreenderam isso. Em Lisboa, um convento abandonado virou jardim comunitário.

Em São Paulo, uma fábrica desativada renasceu como centro cultural.

Em Bogotá, um edifício paralisado foi transformado em habitação social. São cidades que ousaram reescrever suas páginas, como se o traço do desenhista tivesse ecoado na política urbana.

Planejar cidades não é apenas erguer estruturas, mas completar narrativas.

O futuro não nos julgará pelas torres interrompidas, mas pela coragem de terminá-las.

E quando não for possível concluí-las, pela ousadia de reinventá-las.

Talvez seja esse o recado dos Urban Sketchers: mostrar que cada traço é mais que registro, é ato de resistência.

Ao desenhar, lembram à cidade que ela ainda pode ser inteira. E no silêncio de um caderno, às vezes é o lápis que tem a última palavra.

 

Alessandro Lopes é arquiteto, pesquisador em cidades criativas e inteligentes

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