Sankofa, símbolo africano dos povos Akan   | Boqnews

Opiniões

24 DE NOVEMBRO DE 2025

Sankofa, símbolo africano dos povos Akan  

Alessandro Lopes

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Nestes dias em que se enfatizou a Consciência Negra, senti que a cidade falava comigo de um modo diferente.

Havia algo no ar, como se cada rua guardasse uma mensagem que eu ainda não sabia decifrar.

Foi então que lembrei de um pequeno livrete que minha avó trouxe da África do Sul.

Procurei entre papéis até encontrá-lo. Ao abrir, uma palavra se levantou com a força de quem exige atenção: Sankofa, um símbolo africano dos povos Akan que significa “retornar ao passado para construir o futuro”.

Voltar para buscar o que ficou para trás e permitir que a memória ilumine o que o olhar apressado ignora.

Essa palavra se impôs como título porque tudo o que escrevo nasce desse gesto de retorno.

Com o livrete ainda na mesa, sentei-me para um café. A manhã parecia comum, mas havia algo inquieto ao redor.

Enquanto observava uma fachada colonial, meu olhar foi puxado pela data gravada na pedra. A pausa breve transformou-se em convocação.

Quanto mais eu olhava, mais a superfície perdia a inocência.

A estética calma da arquitetura deu lugar a outra camada, mais profunda. O ar se adensou. A parede respirou.

E compreendi que aquele número não era ornamento, mas cicatriz. A cena se recompôs na minha mente como um negativo que ganha cor.

Martelos marcavam ritmos duros. Ordens cruzavam o ar. Corpos escravizados sustentavam a obra sob calor e violência.

Aquele marco não celebrava nada. Era testemunho de dor.

A escravidão moldou este país de forma absoluta. Milhões foram arrancados de suas terras e trazidos à força entre os séculos XVI e XIX.

Quando a liberdade chegou em 1888, veio sem reparação. O passado não desapareceu. Apenas mudou de forma.

Pesquisadores como Mary Karasch, Nireu Cavalcanti, Geraldo Gomes da Silva e Cristina Wissenbach revelam camadas que a história tentou encobrir, mas que persistem nas cidades.

E as cidades falam. Falam nos passos esquecidos, nos gestos que reinventaram a vida onde tentaram impor silêncio, nos ritmos que atravessaram oceanos e se tornaram coluna vertebral do país.

A diáspora está inscrita no urbano como fundamento e nunca como adorno.

Como arquiteto e urbanista, entendo que meu papel não é narrar a experiência negra.

É assumir responsabilidade pelo modo como leio e projeto as cidades. Não existe neutralidade no olhar. Cada escolha molda o que construo e o que posso reparar.

As cidades respiram. Quando respiram fundo, lembram. Cabe a nós escutar.

E diante dessa escuta, deixo a pergunta que ecoa desde aquela manhã: como impedir que o silêncio que apagou tantas vidas continue se repetindo nas cidades que estamos construindo?

 

Alessandro Lopes é arquiteto, cronista, pesquisador de cidades criativas e inteligentes, e consultor regional do Instituto Multiplicidades

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