“Vi um menino amarrar uma corda em um ferro de passar roupas. Aos olhos dele, era um carrinho. Aquela cena me tocou muito. Tinha de fazer alguma coisa”. Contudo, essa cena descrita por Marline Shimabuko ocorreu há mais de 20 anos.
Desde então, a vicentina Duca – como gosta de ser chamada – se habituou a transformar em sonhosos brinquedos que recebe de doação.
Com isso, aos 78 anos, a artesã recupera brinquedos antigos nos fundos de uma modesta casa na Vila São Jorge.
O ateliê, apelidado carinhosamente de “meu paraíso”, apresenta logo na entrada caixas repletas de bonecas. Todavia, todas vestem um mesmo modelo de vestido. “Cada ano eu crio uma roupinha.
Elas saem iguais daqui, sempre lindas”, explica a divertida Duca. “Boneca minha também não sai sem calcinha”.
Entretanto, o hobby teve início quando ela morava em um sítio em Miracatu, no Vale do Ribeira. Ao ver um menino improvisar o carrinho com o ferro de passar, a artesã decidiu presentear as crianças da vizinhança com seu talento.
A princípio, houve quem desconfiasse do trabalho voluntário, mas o reconhecimento de quem era presenteado surpreendeu.
“Uma amiga esteve em uma entrega de brinquedos. Os meninos, por serem muito tímidos, faziam buquês com flores do mato em agradecimento e pediam para outras pessoas me entregarem. A cada arranjo recebido, minha amiga ia às lágrimas”.
Certa vez, ao ver os brinquedos, um funcionário da companhia de eletricidade questionou se era o Papai Noel quem morava na casa da artesã. Ao descobrir que tinha duas filhas, Duca ofereceu-lhe bonecas:
“Em janeiro, ele voltou e me abraçou, agradecendo pelos presentes. O homem havia ficado sem o 13º salário e aqueles foram os únicos brinquedos que as meninas ganharam”.
Em frente à máquina de costura, os retalhos ganham forma e se transformam em mais uma peça de roupa para as bonecas. Enquanto costura, ela enaltece a alegria que sente ao presentear uma criança.
“A gente vive com pouco, mas poder proporcionar isso me faz feliz. Tem muita gente boa espalhada no mundo, a gente só tem que acreditar”.
Há 20 anos, Dona Duca recupera brinquedos para ajudar crianças carentes (Foto: Antonio Ferreira)
Portanto, para seguir com o trabalho, Duca tem o apoio de amigos da igreja e de conhecidos que doam os brinquedos antigos. Bonecas sem roupas, com pouco enchimento, riscadas à caneta ou sem partes do corpo estão entre os defeitos mais comuns.
Em pouco tempo, a artesã procura diversas soluções simples e criativas. Em alguns casos, um bom banho de desinfetante e cloro garante a renovação do brinquedo.
A própria aposentada é quem se responsabiliza por todas as etapas da recuperação: da lavagem à pintura.
A primeira boneca recuperada a cada ano é motivo de comemoração. “Eu sento e choro, porque penso que estou dando continuidade no projeto por mais um ano, sabe?”.
Natal com brinquedos
A partir de outubro, Duca conta com uma equipe de aliados. O grupo corre contra o tempo para reformar os brinquedos antes do Natal. Para esse ano, mais de 400 crianças devem ser presenteadas. Com um desafio desses, nem o esposo da artesã escapa. Ele se une aos amigos e voluntários para fazer os embrulhos e retoques finais.
Em dezembro, os brinquedos são entregues em creches, comunidades carentes – como a Fazendinha –, e na aldeia indígena de Paranapuã, para a vribração da criançada. Vaidade pelo trabalho? Nenhuma!: “Nunca tive vontade de ser a Mamãe Noel. Gosto de ser o Papai Noel, já que as crianças não sabem quem eu sou”.