O Ministério Público do Trabalho (MPT) em Santos (SP) ajuizou na última semana uma ação civil pública contra diversas pessoas de uma mesma família por submeterem idosa a trabalho análogo à escravidão. A ação pede o bloqueio de bens dos réus em R$ 1 milhão para o pagamento de danos morais coletivos bem como o reconhecimento de que submeteram a vítima a condições degradantes. O caso chegou ao MPT em 2021 por meio da 2ª Vara do Trabalho da cidade e veio à tona por meio de denúncia à Delegacia de Proteção às Pessoas Idosas.
A idosa de 89 anos havia sido admitida nos anos 70 como empregada doméstica para trabalhar na casa de uma mulher em Santos (SP). Durante cerca de 50 anos, *Laura não recebeu nenhum salário ou qualquer auxílio financeiro, era impedida de sair sozinha (a não ser para executar tarefas de empregada doméstica) e sofria abusos físicos e verbais por parte da patroa e de suas filhas (*os nomes verdadeiros dos envolvidos, inclusive o da vítima, estão em segredo de justiça).
A vítima, que é negra, contou à Justiça que havia perdido sua carteira de identidade (RG) ainda naquela época, e que foi “contratada” após promessa de que os patrões a ajudariam a providenciar uma nova. Entretanto, isso nunca aconteceu. Laura foi ainda impedida de guardar valores (inclusive dinheiro em espécie), e nunca conseguiu sair para solicitar novas vias de seus documentos. Quando implorava para que a deixassem procurar seus familiares, respondiam que, se ela fosse, perderia para sempre o abrigo e alimentação que recebia ali.
Com os anos, a situação de saúde de Laura piorou e a violência física e psicológica se intensificou. As filhas da patroa proferiam xingamentos e humilhações constantes aos gritos contra ambas as idosas. Laura relatou após seu resgate ter sofrido também agressões físicas com “tapas e socos”. Em uma dessas ocasiões, uma vizinha de apartamento resolveu denunciar o caso em 2020 à Delegacia de Proteção às Pessoas Idosas, para onde enviou gravação das agressões verbais em que se ouvia uma das filhas gritando: “(…) essa sua empregada vagabunda; essa cretina, demônia (…)”.
Laura está agora aos cuidados de seus parentes, que foram localizados pela delegacia após investigação policial. Por meio de ação trabalhista movida contra a família da ex-patroa na 2ª vara do Trabalho de Santos, Laura obteve direito ao pagamento de pensão mensal no valor de 1 salário mínimo bem como o custeio integral de plano de saúde. Por meio da vara do Trabalho o caso chegou ao MPT, que entrou com a ação civil pública depois que a família se recusou a fazer qualquer acordo para corrigir a situação.
Para o procurador do MPT Rodrigo Lestrade Pedroso não há dúvidas de que Laura foi submetida a trabalho análogo à escravidão, “agravado pela vulnerabilidade de pessoa idosa, extremamente simples, que mal consegue descrever tudo por que passou e tampouco ter consciência da situação de exploração a que foi submetida por mais de 50 anos”.
As duas filhas de Laura a procuraram ao longo dessas 5 décadas, sem saber se a mãe estava viva ou morta. Mas era impossível encontrá-la, uma vez que era mantida fora dos registros pelos antigos patrões. A primeira filha faleceu “sem realizar o sonho/vontade de reencontrar sua genitora”, segundo texto da inicial da ação trabalhista. A outra desenvolveu graves problemas psicológicos por conta do abalo com o desaparecimento da mãe e hoje precisa de cuidados especiais.
A ex-patroa de Laura e uma de suas 3 filhas faleceram em 2021. Outra filha já havia falecido antes de o caso vir à tona. O MPT considera que todas se beneficiaram diretamente da situação degradante de Laura, já que também administravam a casa e lhe davam ordens diretas, aproveitando-se do fato de que havia alguém para cuidar da mãe em tempo integral, sem custo algum. Por esse motivo, na ação o MPT pede o bloqueio dos bens de todas as filhas, inclusive do inventário das falecidas. Também pede o bloqueio de bens do marido de uma das filhas, que administrava a pensão e os bens da sogra.
Segundo o procurador Rodrigo, “o fato de os réus não residirem no local da prestação de serviços não afasta o vínculo empregatício, já que os serviços prestados como doméstica e acompanhante eram destinados ao núcleo familiar”, e não apenas à ex-patroa com quem Laura residia.
Na ação, o MPT requer liminar para arresto do imóvel em que as idosas moravam e também o bloqueio de bens móveis e imóveis, veículos e ativos dos réus no valor de R$ 1 milhão. Também pede a confirmação de que submeteram a trabalhadora à situação de trabalho análogo ao escravo e que sejam, por isso, condenados ao pagamento de danos morais coletivos não inferior a R$ 1 milhão, a ser revertido a programas específicos de combate ao trabalho escravo.
“A dita escravidão contemporânea tem cor, raça, e no caso do trabalho doméstico, gênero. São as mulheres negras, em sua maioria nordestinas, vítimas de uma vulnerabilidade social extrema que aceitam o trabalho doméstico, muitas vezes em troca apenas de comida e moradia”, alertou o procurador do MPT. “A vítima é idosa, e estamos em tempo de pandemia, o que traz para a situação ares de crueldade criminosa”.