O Brasil é um país no qual a narrativa se impõe sobre a verdade.
Não é uma realidade nova, porém muito acentuada com o fenômeno das redes sociais que ocupam cada vez mais espaço no cotidiano das pessoas, disseminando inverdades e inflamando discursos de ódio com potencial explosivo para a polarização da qual a nação não consegue se libertar.
Colabora para esse cenário a postura quase passiva da grande mídia, ainda incapaz de fazer frente à nova realidade, também porque praticamente vem abdicando de exercer seu papel mais relevante – o de questionar sempre e com profundidade -, cedendo cada vez mais espaço para a cobertura supérflua de pseudocelebridades.
“Jornalismo é questionar, o resto é chapa‑branca”, diz a frase atribuída ao norte-americano Joseph Pulitzer, que merece ser lembrada no momento.
Faria muito bem ao país se o jornalismo brasileiro fizesse, de fato, um contraponto às inverdades contidas nas narrativas do governo, comparando o discurso oficial com os dados igualmente oficiais e contextualizando tudo com a realidade vivida por mais de 200 milhões de cidadãos.
Um exemplo: o Brasil ostenta a nona ou 10ª posição entre as maiores economias do mundo, com Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 12,6 trilhões, o equivalente a US$ 2,2 trilhões.
No entanto, no ranking do PIB per capita, o país ocupa a vergonhosa 81ª colocação, pois o PIB per capita nacional é de apenas US$ 10,82 mil por habitante/ano, bem inferior à média mundial, de US$ 14,45 mil.
Esse número, por si, contrasta com o ufanismo do governo e desnuda a abissal discrepância entre a riqueza do país e a distribuição de renda e a qualidade de vida de seu povo.
Outro dado pouco divulgado é que no trimestre de março a maio de 2025 a massa salarial dos trabalhadores foi de R$ 355 bilhões, o correspondente a apenas 11,3% do PIB no mesmo período. Esses números mostram claramente o Brasil na contramão dos 37 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Económico (OCDE).
Igualmente grave é a recente revelação feita no final de maio pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do Ministério do Desenvolvimento Social, apontando que em 12 das 27 unidades da Federação (26 estados mais o Distrito Federal), o número de beneficiários do Bolsa Família é maior do que de trabalhadores com carteira assinada.
Enquanto o governo comemora o crescimento dos empregos formais, em quase metade dos estados do país – notadamente no Norte e Nordeste – há mais gente vivendo do programa de transferência de renda do governo do que do emprego, uma dependência que merece reflexão porque o sucesso de um programa desse porte, criado para combater a pobreza, deveria ser medido pelo número de pessoas que deixam de depender dele, e não pelo volume de atendidos.
Temos mais de 21 milhões de famílias vivendo com menos de R$ 800,00 por mês.
Segundo o IBGE,14,2% dos trabalhadores brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza, com renda mensal de até R$ 665,00, menos da metade um salário-mínimo.
Mais de um terço deles (35,6%) têm renda mensal de até um salário-mínimo (R$ 1.518,00), e 70% vivem com menos de 2 salários-mínimos/mês). É o retrato da penúria da população.
Esses dados e o recente estudo do Atlas Mobilidade Social mostram, de forma inequívoca, que as políticas públicas fracassaram e já comprometem as gerações futuras, pois não há esperança de ascensão social e os indicadores de educação são muito ruins.
Está claro que oferecer mais do mesmo não funciona há alguns anos.
Também não se sustenta o discurso do governo de que a pobreza avassaladora é culpa das classes empresariais “que não querem pagar imposto”.
Vamos aos números. O brasileiro paga em tributos o equivalente a 142 dias de trabalho.
Isto é: tudo o que o cidadão ganha de 1º de janeiro a 22 de maio vai para o governo.
Esses tributos, somados, correspondem a 34%-35% do PIB. Portanto, pouco mais de um terço de todas as riquezas produzidas anualmente no Brasil é resultado do suor dos trabalhadores.
A culpa, porém, é sempre atribuída aos governos anteriores, como um salvo-conduto que se repete como se os gestores não fossem eleitos justamente para buscar soluções para os problemas nacionais, conforme prometem nas campanhas eleitorais.
Aliás, a maioria dos candidatos sucumbiria se houvesse detector de mentiras nos debates.
Vale lembrar que o governo atual está no comando do país há dois anos e meio e presidiu a nação por quase 11 dos últimos 23 anos, ou seja, 48% do período. E o seu partido governou por 17 anos (74% do total do período), com apenas duas figuras.
Os problemas persistem, com gritantes desigualdades sociais e regionais, e não se questiona qual o plano de governo.
Qual a política industrial? Qual percentual da trilionária arrecadação de tributos é destinado a investimentos? Qual a evolução dos programas de saneamento básico, essencial para melhorar a qualidade de vida e a saúde de milhões de brasileiros?
Quantos dos 21 milhões de chefes de família deixam o Bolsa Família por ascensão social? São perguntas que deveriam ser feitas diariamente pelos eleitores e pela mídia.
Há muito tempo o Brasil tem um governo perdulário, incapaz de cortar gastos, tímido em transparência, generoso na concessão de benefícios tributários e sempre com enorme apetite para aumentar impostos.
Não é por acaso que temos uma das maiores cargas tributárias do planeta.
Nesta nação cheia de contrastes, o governo recordista em arrecadação via tributos não destina recursos suficientes para libertar os cidadãos mais pobres das migalhas doadas nem para investir em educação em tempo integral, preferindo subsidiar privilégios, como se o país revivesse as primeiras décadas do colonialismo português com as capitanias hereditárias.
Assim, a educação patina, como mostra a comparação com outros países; e a segurança já supera a saúde entre as maiores preocupações da população.
Governa-se o país como um concordatário que não tem de prestar contas a ninguém.
Isso reclama o aperfeiçoamento dos órgãos de controle como o Tribunal de Contas da União (TCU) e os Tribunais de Contas estaduais (TCEs), cuja composição não pode ser mais objeto de compadrios e acordos políticos e tem de passar a ser definida por concursos públicos sérios e transparentes, com avaliação periódica dos aprovados. A vitaliciedade também precisa ser rediscutida pela sociedade.
Faria muito bem ao país se fosse abolido o foro privilegiado para qualquer detentor de mandato eleitoral e voltasse a ser proibida a reeleição para cargos do Executivo, além de se tornar imprescritíveis os crimes cometidos contra a administração pública.
Representaria o combate efetivo a alguns dos maiores males do país, ao lado das mentiras, todos responsáveis por contaminar os governos e que precisam ser trazidos à tona pela mídia para esclarecer a sociedade.
O país se ressente da falta de informações verdadeiras e de análises críticas e isentas.
Esse papel deve ser resgatado pelas rádios (ainda com grande força entre a população), televisões, jornais e portais na internet, a fim de que os mais de 155 milhões de eleitores votem de forma consciente e não se deixem iludir por promessas de campanha que quase nunca são concretizadas, nem sejam enganados com peças de propaganda criadas para mostrar um país muito diferente daquele onde vivem os cidadãos.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
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