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Opiniões

30 DE DEZEMBRO DE 2021

Ao Mestre com carinho

Por: Fernando De Maria

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Esperei passar uma semana da sua passagem por aqui para finalmente deixar registrado algo pessoal sobre quem foi o professor e jornalista Dirceu Fernandes Lopes, falecido às vésperas do Natal passado, sob a minha ótica particular.

Afinal, foram inúmeros os relatos e depoimentos que circularam nas redes sociais de ex-alunos e colegas de profissão que tiveram contato com o eterno Jornalista.

Isso mesmo: com J maiúsculo.

Textos irretocáveis e merecidos pelo que representou Dirceu em sua passagem pela vida de milhares de pessoas, suas fontes, entrevistados, amigos e alunos.

De forma geral, todos mostravam como Dirceu era: uma pessoa de temperamento forte e dócil ao mesmo tempo, sempre atento às questões sociais.

Um fã, aliás, de piadas, especialmente de português – vindas de um descendente de espanhol. O que explica o sangue quente…

E isso ele fazia na prática não só de forma profissional, mas também pessoal.

Aliás, usava o Jornalismo como ferramenta para efetivamente transformar a sociedade na busca por maior justiça social.

Inúmeras reportagens retratam bem o olhar – como ele sempre dizia: ‘ver a vida com o olhar de repórter’ – de quem tinha uma visão e faro jornalísticos apurados e diferenciados.

Ensinamento, aliás, que passou para gerações de jornalistas.

Alguns se tornaram docentes, como eu.

E tem os ensinamentos de Dirceu como referência para transmitir às novas gerações.

Dar voz a quem não tem voz

Em uma delas, um dos seus maiores orgulhos, era a história do carrinheiro que conseguiu dar uma reviravolta na sua vida, após publicação de reportagem escrita por Dirceu em A Tribuna.

Lembro-me que ele sempre comentava quando a filha do entrevistado foi agradecê-lo na redação do jornal pelo que a reportagem proporcionou àquele pai, que tinha na bebida sua companhia diária, e assim pudesse mudar de rumo.

E assim, passou a se sentir um cidadão como os demais, com seus direitos e deveres.

Afinal, a sua voz (a do carrinheiro) foi ouvida.

Título, aliás, da reportagem que ilustrou a reportagem de página dupla na ocasião.

Sem contar a denúncia de maus-tratos em um asilo localizado na Vila Mathias, que ganhou ampla repercussão na ocasião.

Textos de caráter extremamente social. Reflexo da sua conduta.

‘Vamos ter autonomia?’

Ou da insistência – como pregava Dirceu – do repórter em conseguir uma resposta tão aguardada pelos santistas nos idos da ditadura militar: ‘quando Santos voltaria a ter sua autonomia?’

A despeito dos seguranças e das dificuldades de acesso, Dirceu conseguiu seu objetivo.

O general de plantão à época, João Figueiredo, demorou, mas acabou cedendo aos apelos do sempre Repórter.

E disse que a autonomia de Santos – tão aguardada desde o fim anos 60 – viria.

Só não detalhou quando…

O tempo passou, mas, enfim, a fala presidencial acabou ecoando, ainda que assinada pelo seu vice, Aureliano Chaves.

Assim, dessa forma, em 1984, Santos voltava a eleger seu prefeito.

Aliás, elegendo o vice que não tomou posse em 1968, Oswaldo Justo, junto com o primeiro prefeito negro eleito na Cidade, Esmeraldo Tarquínio, cassado pela ditadura.

Dirceu Fernandes Lopes: um símbolo do que realmente representa o Jornalismo em sua essência. Foto: Divulgação

Relatos

São inúmeros e belos relatos individuais de vários jornalistas que conviveram com ele ao longo das décadas de trajetória profissional, seja nos vários veículos onde atuou – chegou a trabalhar em cinco simultaneamente -, seja nos bancos escolares de egressos tanto da ECA – Escola de Comunicação e Artes da USP – Universidade de São Paulo, seja na Faculdade de Comunicação de Santos – Facos.

Dirceu recebeu Até texto na Folha de S. Paulo e no Uol.

Justa homenagem, apesar de, particularmente, ter certeza que ele não ligaria para isso.

Dessa forma, tive o orgulho de ter sido aluno dele em ambas as instituições onde lecionou por décadas.

E presenciei, em fases distintas da sua trajetória, a sua preocupação com a qualificação profissional e amor não só pela profissão, mas como ela poderia dar esperança e ajudar sempre aqueles que não têm vez nem voz junto às autoridades.

Aliás, foi na minha turma da faculdade onde ele criou o famoso Mural dos Morros – depois ampliado para a Zona Noroeste e outras áreas periféricas de Santos, que virou referência para outros projetos acadêmicos pelos cursos de Jornalismo Brasil afora.

O tema foi tão dignificante que acabou me seduzindo para a conclusão do meu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso sobre Jornalismo Comunitário.

Dirceu, eterno Mestre

Lembro-me desta época na redação da antiga Facos, na Pompeia, e da correria do Agência Facos, um boletim diário que era uma verdadeira adrenalina para aquela geração cheia de vontade, onde internet, computadores, celular, Uber e outras novidades sequer eram cogitadas.

Tudo era na raça mesmo.

Eram sábados onde entrávamos de manhã e ficávamos até o final da tarde/início da noite pelos corredores e escadarias daquela excepcional escola, após captar informações nas ruas – (lugar de repórter é na rua, como diria Ricardo Kotscho).

Dirceu sempre dizia: ‘os jornalistas precisam dar voz para quem não tem voz’, acrescento.

Velhos e bons tempos.

Sem esquecer da caneta vermelha ou azul do Dirceu para corrigir os inúmeros textos que chegavam à redação, escritos em laudas nas velhas e barulhentas máquinas de escrever.

E se não ficasse bom, o cesto de lixo estava ali para receber as ‘bolinhas’ que surgiam a cada nova entrega.

Terremoto

Lembro-me de uma reportagem que fizemos à ocasião que provocou um verdadeiro terremoto na faculdade.

Eu e o meu colega, Eduardo Velozo Fuccia, que se tornaria um dos melhores repórteres policiais da nossa geração, recebemos uma pauta de Dirceu sobre a situação da Aids em Santos.

Era 1987 e o tema ainda era envolto em preconceito, tabu e falta de informações.

Enfim, não me recordo como, mas acabamos entrando no Hospital Guilherme Álvaro e chegando até uma ala exclusiva para portadores de Aids.

O nosocômio era referência para a doença na ocasião.

Lembro-me de ter entrevistado uma jovem acamada, vítima da doença.

Esquelética, ela relatou para mim seu drama.

Recolhemos as informações e chegamos a nos reunir para depois avaliar a ‘bomba’ que estava em nossas mãos.

Falar de Aids nos anos 80

Afinal, como era  fácil acesso de estranhos a uma ala de portadores de Aids para ouvir suas histórias?

Na ocasião, nem pensamos em riscos – não se sabia direito sobre a doença – não para nós, mas para os pacientes, pois poderíamos transmitir, ainda que de forma involuntária, alguma doença para eles.

Chegamos à redação no final da tarde daquela tarde chuvosa e fria.

Dirceu nos aguardava pacientemente e queria saber se a gente trazia alguma informação relevante que justificaria tanta demora.

Enfim, ganhamos a manchete daquela edição do Agência Facos.

Apesar de uma publicação universitária, a repercussão foi enorme.

A ponto do diretor do hospital, Fausto Figueira Jr, que depois se tornaria secretário municipal e deputado estadual, ligou para a faculdade reclamando da nossa ‘irresponsabilidade’.

A bomba caiu no colo do então diretor, Estefan Kabbach, que resolveu a situação com Dirceu.

O Jornalista sabia, com orgulho, que fizemos a coisa certa como estudantes que sonhavam em mudar o mundo na ocasião por meio da profissão que escolhemos – hoje a gente sabe que a história é outra…

E ele apostava na produção acadêmica como ferramenta para transformar jovens alunos em melhores profissionais.

Não é à toa que praticamente toda sua obra acadêmica foi destinada aos jornais-laboratórios, sendo autor de livros obrigatórios no tema.

Não é à toa, seus colegas do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA bem o definiram na manchete publicada um dia após sua morte: Falece Dirceu Fernandes Lopes, o pai do jornal-laboratório no Brasil

Dirceu Fernandes Lopes: um ‘pai’ para centenas de jovens jornalistas ao indicar estágios e empregos nos mais variados veículos de comunicação. Foto: Divulgação

Dirceu paizão

Assim, como colegas já relataram em seus textos, Dirceu sempre procurava encontrar oportunidades de estágios para os seus alunos – que, é claro, estivessem interessados.

Inicialmente, me arrumou um freela com a ótima jornalista Giselda Braz para um boletim de uma entidade de classe.

Depois, ao saber que havia pedido demissão do emprego de uma empresa de navegação para receber menos da metade do salário para trabalhar na rádio Nova Tribuna AM, a convite do excepcional Eduardo Silva – afinal, era a única forma de poder entrar na profissão -, Dirceu conseguiu um estágio na Assessoria de Comunicação da Unisantos, após ter conversado com o responsável, Antonio Fernando Conceição dos Santos, a quem também tenho um apreço especial.

Assim, com a bolsa da faculdade – na época o valor da mensalidade era menor que o salário mínimo – e o novo emprego na rádio praticamente conseguia receber o mesmo que ganhava na empresa de navegação.

Afinal, em razão do meu pai aposentado e doente, qualquer centavo a menos fazia a diferença em casa.

Pouco antes de me formar, soube que ele também indicou meu nome para uma vaga no Jornal A Tribuna – na época, apesar de pertencerem ao mesmo grupo – eram empresas distintas.

Dois testes

Fiz o primeiro teste às vésperas do Natal de 1989, quando estava me formando.

Passei, mas não entrei.

Afinal, o diploma – hoje objeto de decoração para o ministro Gilmar Mendes e alguns ignóbeis que não sabem distinguir jornalistas de colaboradores – era fundamental para se entrar em uma redação.

Como minha formatura só ocorreria em 2 de março de 1990, fui fazer um novo teste naquela ocasião.

Enfim, três dias depois entrava no jornal, onde ficaria até janeiro de 1993.

E por cerca de 20 dias trabalhei simultaneamente na rádio e no jornal.

Só não fiquei mais tempo neste ritmo frenético em razão do Plano Collor e o corte geral na poupança e na renda de todos. (lembram do limite dos R$ 50 mil cruzeiros, após o confisco da ministra Zélia Cardoso de Mello?).

Estudar

Graças a Dirceu, acabei tomando gosto e amor por algo que faço desde 1996: lecionar.

Mas para chegar lá, ele sempre falava: precisa estudar e fazer Mestrado.

Em 1999, entrei na Universidade Metodista de São Bernardo do Campo.

Dois anos depois, concluía meu estudo e defendia minha dissertação.

Achei que já estava apto como docente. Ledo engano.

Ele reforçava:  precisa fazer doutorado.

E lá fui eu, anos depois, tentar uma vaga na USP.

Na correria dos empregos que tinha e às vésperas do meu casamento, nem sei como fiz a famosa prova.

Mas consegui passar e entrar no doutorado na USP.

Já aluno, pude acompanhar de perto o mesmo rigor que Dirceu tinha na graduação em relação à pós-graduação, passados mais de 20 anos.

E o mesmo jeito, com aquela tradicional mochila nas costas, cheia de livros e papeis que ele costumava recortar e guardar para entregar aos alunos que encontrava pelo caminho.

Orgulho

Tenho orgulho de ter sido o último aluno dele na pós-graduação da USP.

Ele, que já havia formado, dezenas de profissionais tanto no mestrado como no doutorado encerrou sua etapa acadêmica na pós como meu orientador.]

É claro que meu trabalho versava sobre jornal-laboratório (voltado para as agências universitárias de notícias).

Como era referência nacional no tema, Dirceu recebia vários convites para falar sobre projetos pedagógicos espalhados pelo Brasil afora.

Em um deles, indicou meu nome para fazer uma palestra em um curso de Jornalismo de uma faculdade particular no Norte do País.

Fui parar em Boa Vista, capital de Roraima, um dos lugares mais interessantes que já conheci neste Brasil afora.

Mesmo aposentado, continuou lecionando

Aliás, Dirceu era tão apaixonado pelo Jornalismo e pela docência que ele ia até a  USP para lecionar, ainda que estivesse aposentado.

Tirava dinheiro do próprio bolso em gastos como viagem e alimentação para continuar ensinar às novas gerações sobre aquilo que ele tomou para si como missão de vida.

Até que ele percebeu que os tempos – e os interesses – eram outros e acabou parando com esta rotina desgastante semanal.

Em Santos, mantinha – e pagava – por um espaço dentro de uma empresa de xerox na Rua Euclides da Cunha, na Pompeia, vizinha ao prédio erguido no lugar na antiga Facos, para receber alunos e também ler e guardar seus livros e papeis – que se multiplicavam.

Como professor, levei Dirceu várias vezes à universidade para trocar ideias com os alunos do primeiro ano de Jornalismo.

Sua exigência – e pontualidade, a qual reconheço não é meu ponto forte –  não mudava.

Entregava a lista de filmes e livros obrigatórios para qualquer jornalista e falava durante horas sobre a profissão.

Com o tempo, porém, ele começou a perceber que os interesses dos jovens alunos já eram outros – celulares em sala eram o seu maior inimigo.

(Quem não lembra da história quando Dirceu jogou pela janela um celular de uma antiga aluna depois que o telefone tocou, apesar dele ter pedido para que os aparelhos estivessem desligados. E mandou a menina comprar um novo aparelho e enviasse a conta para ele!).

Além destes encontros, costumávamos nos reunir no final de ano para jogar conversa fora.

Era algo obrigatório. E havia se tornado tradição.

AVC

Até que um AVC em 2018, tirou sua mobilidade.

E de certa forma, alterou seu ritmo intenso de vida.

Mas sua garra e força não esmoeceram, ainda que as dificuldades inerentes à idade e os reflexos decorrentes das limitações impostas pela doença restringissem seu caminhar.

Volta e meia me ligava, dizendo, “Ó garoto (como ele me chamava), tenho uns livros e textos para ti. Venha buscar. Vou deixar na portaria do meu prédio’.

Percebia que aos poucos ele gostaria que sua biblioteca particular construída ao longo de décadas tivesse um destino para que algum professor pudesse dar continuidade usando este conteúdo nas aulas destinadas às novas gerações.

E dessa forma, isso se repetiu por dezenas de vezes.

Em razão da pandemia, nossas conversas eram telefônicas ou deixando material – ou tortas de frango  e sua esposa, Terezinha,  adoravam – na portaria.

Em outubro, mês de aniversário dele (Dirceu tinha orgulho de dizer que era três dias mais velho que o Rei Pelé, a quem conheceu pessoalmente durante suas inúmeras coberturas jornalísticas, inclusive no exterior, com o Santos FC), fui visitá-lo em um sábado à noite.

A dificuldade de locomoção era nítida, mas a memória e as tradicionais piadas nunca faltaram.

Fui embora pouco antes do início de um jogo do Santos FC (não lembro contra quem), seu time do coração, que naquela época namorava a zona do rebaixamento.

E pior: no dia seguinte, soube que o Santos FC tinha perdido em casa.

Lembrei-me imediatamente dele.

Cartão sem ele ler

No dia da morte dele, havia separado uma cesta de Natal e escrito um cartão, desejando-lhe Boas Festas, assim como para a esposa, a maravilhosa Terezinha Tagé, e seu filho, Diogo, que escreveu um emocionante texto de despedida na sua bela e merecida página A Vida de Dirceu Fernandes Lopes (obrigatória para saber detalhes deste grande Homem e Jornalista).

Enfim, era para ter levado naquela quarta-feira (22) à noite e deixado na portaria do prédio.

Ligaria depois para ele – ou ele mesmo me ligaria, como sempre fazia – para combinar um horário para vê-lo no domingo, um dia depois do Natal.

No entanto, naquela mesma noite, Dirceu se despedia de nós.

Soube disso, ao levar o cartão e o presente logo cedo pela manhã de quinta-feira (23), quando o porteiro do prédio me disse que Dirceu havia falecido naquela noite.

Fiquei em choque.

Afinal, se tivesse ido no dia anterior, como pretendido, talvez pudesse falar – ainda que por telefone – com ele, sem saber que seria nossa última conversa.

Enfim, isso prova que não podemos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje.

Certamente, de onde ele estiver, ele falaria para mim “Chegou tarde, garoto. Fui“.

Um dia a gente se encontra, Mestre.

Obrigado por tudo.

Minha eterna gratidão.

 

PS.: A missa de 7º dia de Dirceu acontece nesta quinta (30), no Santuário São Judas Tadeu, no Marapé, em Santos, a partir das 19 horas.

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