I
Um dos membros mais destacados da chamada geração beat norte-americana, que reuniu também Jack Kerouac (1922-1969), Allen Ginsberg (1926-1997) e William Burroughs (1914-1997), Gregory Corso (1930-2001), poeta prolífico e marginalizado, autor de mais de duas dezenas de obras lançadas nos Estados Unidos, tem agora os seus derradeiros trabalhos publicados em português, em tradução de Márcio Simões, no livro Últimos poemas (Natal-RN, Sol Negro Edições, 2023).
Em edição bilíngue, a obra traz introdução do escritor e editor norte-americano Raymond Foye, que conheceu pessoalmente o poeta em abril de 1973 num simpósio sobre Jack Kerouac, em Massachusetts, e com ele manteve amizade desde então.
Originalmente, esses poemas foram publicados em 2022 com o título The golden dot: last poems 1997–2000 (O ponto de ouro: últimos poemas 1997–2000), pela editora norte-americana Lithic Press, com edição de George Scrivani e Raymond Foye. A obra traz 110 poemas, mas para a edição brasileira foram selecionados 55.
Em quase todos, Corso medita sobre a velhice, seus amigos mortos, os ciclos cósmicos e acontecimentos que marcaram a sua tumultuada vida, como os anos que passou em orfanatos e presídios, sua experiência com as drogas mais pesadas e o vício da bebida, suas leituras públicas com companheiros da geração beat e sua infância desolada e solitária.
Nascido em Nova York, Corso teve uma vida tumultuada desde os seus primeiros dias, pois, depois de seu nascimento, em razão de divergências com o marido, sua mãe decidiu abandoná-lo.
Ao contrário do que se lê na Wikipédia, a mãe dele não retornou para a Itália, “mas simplesmente fugira para o outro lado do rio, em direção a Trenton, Nova Jersey, onde criou outra família”, como afiança Foye na introdução.
Em razão disso, ele teve de viver a maior parte de sua infância em orfanatos. Já seu pai se casou pela segunda vez quando ele tinha onze anos e foi com quem ele acabou ficando, mas Corso fugiu de casa várias vezes, provavelmente em razão de maus tratos.
II
Foye lembra que, em 1997, quando trabalhava como editor o seu último livro, soube que Corso e a mãe tiveram um reencontro, quando ele já estava com 67 anos e ela com 84.
E que esse reencontro foi filmado por um documentarista. No fim, porém, o reencontro só serviu para reexpor “sentimentos dolorosos de abandono”, como observa Foye.
Esse sentimento está exposto no poema “(E quando falou a última vez…)” em que o poeta diz:
“(…) Depois de 67 anos / do ventre de onde vim / “Eu sou ela / Venha viver comigo” / Vivi a vida quase toda sozinho / Mesmo sendo minha mãe / Nosso sangue era estranho (…) Agora que minha vida está completa / E vi a mãe que nunca vira / Ela forte e doce aos 84 / Eu aos 67 abençoado com bons genes / Vi mais da vida que a maioria / Mudanças, sucessos e reveses… (…) A vida é mesmo tão preciosa / as memórias do passado / sempre retornam para lembrar os erros / os erros que nos envergonham ante a precariedade da vida / ensinam a pensar, ir devagar, respeitar o momento sagrado / a importância de tudo / a bondade de tudo / significa ser salvo, ir para o céu / vida ah vida / algo pra valer, não sei, não posso dizer”. (pp. 61/63).
Por aqui se vê que o poeta sempre ficou preso ao passado, tendo guardado nos confins da memória circunstâncias que lhe foram decisivas e o fizeram trilhar um caminho pouco edificante, que o levou a fazer da poesia um confessionário, numa espécie de penitência. Em seus versos, ficam aparentes a angústia e o desespero, expostos com proverbial lucidez e franqueza.
III
É de se lembrar que, depois da breve vida tumultuada com o pai, Corso acabou sendo mandado para um internato masculino, do qual também fugiu. Adolescente, teve de passar vários meses na prisão municipal de Nova York, depois de ter roubado um aparelho de rádio.
Aos 17 anos, foi condenado por roubo e mandado para a Clinton State Prison, em Nova York, onde permaneceu por três anos.
Do pai, obviamente, não guardava boas lembranças. Pelo contrário. À época de seu reencontro com a mãe, o pai já estava em seus últimos dias.
E, embora o odiasse, Corso fez um esforço para recebê-lo em sua casa, mas acabou igualmente por passar por uma situação dolorosa quando o pai o confundiu e o chamou de Dominic. É o que se pode deduzir deste trecho de seu poema “(Caro e Santo Dr. Lucas…)”:
“(…) eu não fazia ideia de que ele tinha Alzheimer; não o via há mais de 10 anos, ele tem 86 anos; mora em San Antonio, Texas – ele e meu irmão mais novo vieram me visitar – ele não podia ficar sozinho; meu irmão cuidava dele; foi horrível; eu ajudei a limpar a bunda do monstro que quase matou minha mãe de 16 anos; ela fugiu, deixou-o, e a mim, para sempre – eu não queria a sua morte, incompleta em vida, em minha consciência!” (pág. 139).
Dos pais adotivos que tivera também não guardava nenhuma boa lembrança, como se pode ver no poema “(Tão profundo – profundo – lá dentro…)”:
“(…) Nada de ruim me aconteceu / ao crescer católico / exceto os pais adotivos católicos / 6 ao todo / só me adotavam para receber dinheiro da Igreja / Não me amavam / Presos na Grande Depressão / De todo modo nunca relacionei a Divindade com as ações / das pessoas / Na foto do Orfanato / eu era o garoto de cabelo preto cacheado / sentado no colo de Cristo. (pp. 158/159).
Em outro poema, lembra o incidente em que perdeu os dentes, agredido por um maître de um bistrô em Paris, em 1967, o que não teria sido motivo suficiente para que não deixasse de atrair mulheres:
“(…) Mas isto foi há 30 anos / e durante esses anos / independente das perdas / Amei quatro mulheres / vivi cinco anos com cada uma / e dei a cada uma delas uma participação especial minha / Todas estão bem / Sempre mantenho amizade com as mulheres / Só deixei de procurá-las com a idade / Mas algumas vieram até mim / As perdas da mocidade são perdas da vaidade / A velhice com as perdas é outra coisa (…) (pág. 121).
Para Foye, os versos de Últimos poemas são a coroação de uma carreira marcada por obras que demonstram “os extraordinários poderes do poeta”, pois lê-los permite “entrar totalmente em sua mente e testemunhar o próprio ato de criação”.
Para o editor, nesses últimos poemas, “ele voltou à vela, à meia-noite, escrevendo para si mesmo e para o leitor solitário”.
Em outras palavras: Corso fez da poesia uma maneira de escancarar as portas de sua casa aos leitores, permitindo-lhes conhecer os meandros de sua intimidade, num ato permanente de catarse, ou seja, um profundo processo de libertação emocional.
IV
Foi na biblioteca da prisão que descobriu o prazer da leitura e da literatura e começou a escrever poesia.
Liberado em 1950, retornou a Nova York, onde conheceu Allen Ginsberg, que, mais tarde, acabou por apresentá-lo a outros da membros daquela que seria chamada de geração beat.
O primeiro volume de sua poesia foi uma edição caseira publicada em 1955, com a ajuda dos colegas da Universidade de Harvard, onde ele assistia aulas como aluno ouvinte: Vestal Lady on Brattle e outros poemas.
Isto se deu no ano anterior à publicação da primeira coletânea de poesias de Allen Ginsberg e a dois anos antes do aparecimento de On the road, de Jack Kerouac.
Em 1958, Corso teve uma coletânea de poemas publicada pela City Lights Pocket Poets Series: Gasoline/Vestal Lady on Brattle. Seus poemas mais famosos são “Bomba” (escrito na máquina de escrever na forma de uma nuvem de cogumelo) e “Casamento”, uma meditação divertida sobre a vida matrimonial.
De profissão indefinida, Corso, em certa época, foi chefe de uma gangue, que organizou com walkie–talkies.
Não se sabe o que fazia para sobreviver, mas, segundo Foye, teria ganho um bom dinheiro com seus versos: mais de 100 mil dólares com o poema “Casamento”.
Seus últimos livros foram: Mindfield: new and selected poems (1989); King of the hill, em parceria com Nicholas Tremulis (1993); Bloody Show, em parceria com Nicholas Tremulis (1996); Brink of the world, em parceria com Stephen Pastore (2008); The whole shot, entrevistas (2015); Sarpedon: a play by Gregory Corso (1954/2016); Melted parchment (2019); e Collected plays (2021).
Morreu em Minnesota de câncer de próstata a 17 de janeiro de 2001, na casa de uma filha que o acolhera em 2000, mas, como era o seu desejo, suas cinzas foram transportadas para o Cemitério Inglês Protestante, em Roma, e ficaram num túmulo em frente ao do poeta inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822).
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Últimos poemas, de Gregory Corso, edição bilíngue, com seleção e tradução de Márcio Simões e introdução de Raymond Foye. Natal-RN, Sol Negro Edições, 172 páginas, R$ 50,00, 2023. Site: solnegroeditora.blogspot.com E-mail: [email protected]
Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: [email protected]