Homenagem a Herberto Helder em versos    | Boqnews

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09 DE DEZEMBRO DE 2025

Homenagem a Herberto Helder em versos   

Adelto Gonçalves

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I

Se o ritmo poético se encontra tanto nos poemas em versos como nos poemas em prosa, como observou o professor Massaud Moisés (1928-2018), em seu A Criação LiteráriaPoesia (São Paulo, Editora Cultrix, 2003), à página 194, Folhas de Flandres (Lisboa, Apenas Livros, 2014), da poeta e ensaísta Maria Estela Guedes, é um exemplo bem acabado de que o ritmo poético não vive em função de nenhum recurso formal em particular, mas do fenômeno poético em si.

Afinal, os 14 poemas que compõem esta obra são narrativas em versos que contam histórias ou, às vezes, transmitem apenas sensações provocadas por viagens em que o fenômeno poético se desenrola em seu interior.

Em resumo: as palavras aqui falam diretamente aos ouvidos do leitor e ganham significação como melopeia, esse aspecto sonoro da poesia, que envolve ritmo, cadência e musicalidade, expressando, acima de tudo, emoção.

Na primeira parte do livro, que dá título à obra, no poema “Temple des Charbonniers”, a autora principia uma homenagem que presta ao jornalista Herberto Helder (1930-2015), que é considerado o maior poeta português da segunda metade do século XX.

II

Nascido no Funchal, na Ilha da Madeira, de família de origem judaica, Herberto Helder viajou para o Continente ao final dos anos 1940 e, depois, fez algumas viagens pela Europa.

Foi bibliotecário e trabalhou como redator em rádio e televisão, além de ter sido diretor literário da Editorial Estampa, pela qual publicou parte da obra do artista plástico, poeta, romancista, ensaísta e dramaturgo Almada Negreiros (1893-1970).

Viveu ainda um período em Angola, onde atuou com repórter, tendo retornado a Portugal em 1971, depois de ter sofrido um grave acidente em Luanda.

Em Lisboa, apesar de perseguido pela polícia política do regime salazarista, foi ainda revisor da Editora Arcádia e redator de notícias na emissora de rádio RDP.

E participou da edição de dois cadernos da revista Poesia Experimental (PO.EX), mas nunca foi visto como praticante desse tipo de poesia visual.

Nessa altura, publicou três ou quatro poemas visuais, mas foi só.  Ao final da vida, converteu-se numa figura hermética e misantropa, que recusava homenagens, prêmios ou condecorações, assim como se negava a dar entrevistas ou a ser fotografado. Em 1994, recusou o Prêmio Pessoa.

No poema “Temple des Charbonniers”, Maria Estela rememora, num imaginário diálogo com Herberto Helder, uma viagem à região flamenga da Bélgica (ou Flandres), uma área de língua holandesa no norte do país, e uma das três regiões belgas.

A capital nacional, Bruxelas, considerada uma região em si, está localizada perto do limite Sul de Flandres, enquanto Antuérpia é uma cidade portuária e importante centro de comércio de diamantes com uma reputação de design de moda, famosa por seu Museu Real de Belas Artes que reúne uma grande coleção de pinturas de mestres flamengos.

Eis um trecho do poema:

“(…) Não vai para Antuérpia este comboio / Mas imagina tu, Herberto, para onde vai a carvoeira! / Para um templo aberto na floresta dos símbolos / Verdes, na Flandres, algures / Nordeste de França / Por onde tu de comboio também viajaste, na / Fronteira com a Bélgica das vacas / No limite da fome / Em Antuérpia / Cantando flamenco / Dançando fandango / Aliás era o tango / Nos bares de putas e marinheiros. (…).

III

Como contou a própria autora a este resenhista, Folhas de Flandres tem uma história, nesse poema da viagem e naquele intitulado “Comboios que não vão para Singapura”, que, aliás, é título de um conto de Herberto Helder.

“Há dez anos houve um colóquio sobre o poeta na Sorbonne, em Paris, do qual participei. Então, aproveitei para ir de comboio a Lille, na região da Flandres, e visitar o templo de um grupo franco-belga de iniciados que praticam um rito florestal. Para meu espanto, o templo é a própria floresta”, recordou.

Segundo a autora, a viagem de comboio lembrou-lhe aquela que Herberto Helder fez em sua juventude, pela Flandres, tudo descrito no livro de contos Os passos em volta (Lisboa, Portugália Editora, 1963, 1ª edição).

“Ele ia sem documentos, sem dinheiro, e, por isso, teve de sobreviver com mil e um trabalhos precários. Eu lembro isso, é uma conversa informal, que podíamos ter tido em minha casa”, observou, assinalando que, em junho de 2025, saiu a obra Se eu quisesse, enlouquecia (Lisboa, Contraponto), uma imensa biografia, de quase 900 páginas, de autoria do sociólogo e crítico literário João Pedro George, que marca os dez anos do desaparecimento do poeta e cujo título foi retirado do primeiro texto de Os passos em volta.

“Nesse livro me é dada demasiada atenção, porque houve um romance entre nós, ao final dos anos 70, de que resultou o meu livro Herberto Helder, poeta obscuro, que saiu em 1979 pela Moraes Editores, de Lisboa”, contou.

Tantos anos depois, Maria Estela disse que, com a participação na biografia, voltou “a conversar naturalmente” com Herberto Helder, “sem zangas, numa boa”.

E acrescentou: “Na época, em 2014, ele leu o livrinho (Folhas de Flandres).  Não é homenagem, é um gesto de carinho, porque eu lhe ofereço aquilo de que ele gostava tanto: sagrado, mistério, no caso o templo de uma ordem, La Renouée, similar à Maçonaria Florestal, diferente da Maçonaria da Pedra, aquela que todos conhecemos, porque esta é muito menos encoberta.

Em Portugal, um ramo da Maçonaria Florestal deu origem à Carbonária, militarizada, criadora da República”, observou.

IV

De fato, no extenso poema “Comboios que não vão para Singapura”, que ocupa cinco páginas e meia, Maria Estela dá prosseguimento à homenagem a Herberto Helder, cujo trabalho poético e figura hermética já a haviam atraído, levando-a a publicar, além de Herberto Helder, poeta obscuro, A obra ao rubro de Herberto Helder (São Paulo, Escrituras, 2010), que considera como suas “obras de referência”. Como se vê, quando escreveu este poema, Herberto Helder ainda vivia e é rememorado pela poeta em vários trechos, como neste que segue:

“(…) Comboios flamengos. / Não são os teus, Herberto. / Não são comboios para Antuérpia / Nem para Singapura, nem para a Idade de Ferro. / A idade não é a mesma / Nem o vaso de grãos que chama na lonjura. / Nada nos ata / A não ser os nós apertados do fio / Das palavras. / Viajamos no TGV / Apesar de em carruagem econômica / E, ao contrário de ti, / Munidas de responsáveis documentos” (…).   

Mais adiante, ainda no mesmo poema, a autora continua o seu imaginário diálogo com o poeta:

“(…) Não, Herberto, os comboios são diferentes apesar / De as mesmas palavras te pousarem nas mãos / Como andorinhas pretas, levando e trazendo / Desnecessárias mensagens secretas. / Só porque sim, só porque servem também para isso / Só para ocultarem o pensamento / Dos Mestres poetas. Temos direito à noite / Às passagens estreitas / A não banalizar os nomes. / Que sentido faria o telemóvel / Não existia no nosso mundo / Fechado / Por um perímetro mágico. / No nosso usavas telefone fixo / E hoje duvido que saibas lidar com os mistérios / Tremendos do correio eletrônico – vulgo / E-mail (…)”.

Já na segunda parte do breve livro, “Desgarradas & Diversas Folhas”, composta por três poemas, lê-se a peça “Uma cadela em casa de xisto” em que a autora conta a história de uma cachorra que pertencia a um casal de idosos surdos, que “viviam numa casa de lousa”.

E, um dia, os velhos fecharam a porta do lagar, deixando presa lá dentro a cadela, sem sabê-lo. Por dias procuraram o animal, mas não ouviam seus latidos desesperados, até que a cadela concluiu que pelo buraco na porta, onde ela não cabia inteira, poderia enfiar a cauda:

“(…) Dia após dia com o rabo acenou / Até os velhos o verem / E comovidos libertarem / A esfomeada companheira. / Passou-se este caso em Ligares / Terra de Guerra Junqueiro /   Junto à Quinta da Batoca / Onde viveu o poeta / Além dos velhos já surdos / E da caudófona cadela (…)”

V

Maria Estela Guedes (1947), licenciada em Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1978, é membro da Associação Portuguesa de Críticos Literários, da Associação Portuguesa de Escritores, da Associação InComunidade, da Sociedade Portuguesa de Autores e do Instituto São Tomás de Aquino.

É editora da plataforma Triplov (www.triplov.pt), um dos mais significativos sites de divulgação das literaturas de expressão portuguesa, onde pode ser consultada a maior parte de seu trabalho.

Nasceu em Lamego, onde mora hoje, mas viveu na Guiné Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. Reuniu seus poemas evocativos dessa época e de uma Guiné-Bissau que já não existe no livro Chão de papel (Lisboa, Apenas Livros, 2009).

Tem vastíssima obra publicada de livros de e sobre poesia, crítica literária e História e Filosofia das Ciências, em que se destacam  SO2 (Lisboa, Guimarães Editores, 1980), Eco, pedras rolantes (Lisboa, Ler Editora, 1983), Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985), À sombra de Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores, 1990), a_maar_gato (Lisboa, Editorial Minerva, 2005), Lápis de carvão (Lisboa, Apenas Livros, 2005), Ofício das trevas, teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), A boba – monólogo em três insónias e um despertador (Lisboa, Apenas Livros, 2006), À la Carbonara, em co-autoria com J. C. Cabanel e Sílvio Luís Benítez Lopes (Lisboa, Apenas Livros, 2007), Poesia na Óptica da Óptica (Lisboa, Apenas Livros, 2008); Clitóris Clítoris (Cotia-SP, Editora Urutau, 2019); Esta noite dormimos em Tânger  (Cotia-SP, Editora Urutau, 2020); Númeras letras (ARC Edições, 2021);  Conversas com Federico García Lorca (Editora Urutau, 2022), Corpus Corpus – José Emílio-Nelson & Herberto Helder (Edições Esgotadas, 2024), e Na Casa de Maria Azenha (Lisboa, Edições Esgotadas, 2025), entre outros.

É autora também de GluGluGlu, antologia de poemas editada pela Tesseractum (São Paulo, 2024, ebook).

Está traduzida em romeno por Maria Manuel Chacán, na obra Dracula draco (Editora Academiei Internationale Orient-Occident, Curtea de Arges, 2017).

Clitóris Clítoris foi traduzido para espanhol por Berta Lucia Estrada. Dois trabalhos seus foram levados à cena, O lagarto do âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987), com direção de Alberto Lopes, e A boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008), com direção de Carlos Avilez.

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Folhas de Flandres, de Maria Estela Guedes. Lisboa, Apenas Livros Lda. (Colecção Naturarte, 24), 48 páginas, 2014. Site: www.apenas-livros.com E-mail: [email protected]

 

Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra e nos Estados Unidos.  E-mail: [email protected]

 

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