Sempre acreditei que a música é o combustível da memória. A música marca os relacionamentos. Tranquiliza os mais ansiosos. Nasce nos assobios dos sossegados. Sacode na ponta dos dedos que escondem a angústia. Invade os ouvidos dos desconfiados. Machuca os surpresos. Persegue pelos refrões. E ressuscita os traumas que nunca esperávamos ter.
Estava na fila da cantina com dois amigos para o cafezinho do intervalo entre as aulas. Enquanto esperava pelo atendimento, virei o rosto para a TV. Ali estava, com seu instrumento em meio a uma platéia extasiada, o saxofonista norte-americano Kenny G.
As imagens sem áudio me pouparam da música que persegue nos eventos sociais. A música de Kenny G virou o coringa de todos os acontecimentos. Não importa o número de pessoas, o tom da solenidade, o sentimento dos presentes. Acredita-se que tudo pode ter a trilha sonora dele.
Quando tinha 18 anos, ganhei dinheiro com festas de 15 anos. Como trabalhava em rádio, passei a apresentar com aquele texto brega de minha autoria as tais primaveras da garota de vestido rosa que se preparava para a valsa. Meu trabalho se limitava a escrever o texto da cerimônia, além de fazer a locução. Não respondia pelo som. Quem o fazia tinha uma música de fundo preferida: Kenny G.
O repertório do saxofonista se encaixa no mantra dos casamentos. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Kenny G reaparece quando os convidados entram no buffet. É justamente no instante em que todos procuram as mesas, loucos pela chegada dos noivos, que autorizam a comilança.
Meses depois, você vai encontrá-lo ao visitar o mesmo casal que abriu o apartamento para a primeira visita. Entre petiscos e bebidinhas, o vídeo maçante do casamento. Uma hora, uma hora e meia de convidados se ajeitando em roupas desconfortáveis, comendo discretamente para não fazer feio em frente à câmera e dançando livres e soltos quando a vergonha se perdeu nos goles de vinho e whisky. Na trilha sonora escolhida pela produtora de vídeo após exaustiva pesquisa, Kenny G!
A música de Kenny G virou símbolo de festa. Deve ter algum significado cabalístico que traz felicidade e prosperidade. São inaugurações, aniversários, solenidades, confraternizações de final de ano, despedidas de colegas de trabalho.
Mas o saxofonista também consola para amenizar as separações.
Recentemente, morreu o pai de um colega de trabalho. Depois do velório, a cerimônia de cremação. Todos sentados em um auditório, com o silêncio respeitoso das circunstâncias. Quando o caixão começou a desaparecer, luz baixa e uma música ao fundo, instrumental. Dele!
Só não ouvi a música dele em chás de bebê, talvez porque não possa entrar neste clube da Luluzinha. E em aniversários de criança, onde ainda predominam outros vícios da indústria fonográfica, à revelia de quem sopra as velas, impedido de escolher sua própria música.
Não tenho sentimentos negativos pelo músico e seu saxofone. Ele não tem culpa de que banalizaram sua obra. As ocasiões especiais viraram rotina digna de programação de FM.
Se você sentiu vontade de ouvi-lo, não espere pelo próximo casamento, aniversário ou morte. Procure pelo CD dele no fundo do armário ou da prateleira e ouça sem contar para ninguém. Se alguém disser que ouviu, tenha a cara-de-pau de culpar o vizinho. O exemplar que ganhei (será que comprei?) ficou na casa dos meus pais. Não sofro de investigação arqueológica no momento. A distância é segura para me proteger de qualquer descontrole.
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