O imperador romano Júlio César, em 49 a.C., desafiou os poderes constituídos ao atravessar o rio Rubicão com a legião romana.
Na ida, o ato foi considerado ilegalidade sem precedentes; na volta, Pompeu, ao interpretar o feito como clara declaração de guerra, ordenou o abandono da cidade para evitar o iminente combate.
De todo modo, César concorreu para o completo fracasso, pois ali assumiu risco não calculado.
A ele é atribuída a famosa frase “Alea iacta est”, traduzida pelo senso comum como “A sorte está lançada”. Pompeu morrera em 48 a.C. e ganhou de César a veneração deificadora por meio de um busto. César morreu em 44 a.C., exatamente abaixo da estátua de seu antigo aliado e desafeto de guerra.
Deu certo, mas deu muito errado também.
A minúscula narrativa da história serve de exemplo para o que se permite e, ao que parece, se pretende sobre a transferência de patrimônio no Brasil.
Em outro artigo, expliquei que a então Medida Provisória 1.085/21, convertida na Lei 14.382, de 27 de junho de 2022, estabelece os procedimentos para o registro de títulos e regulamenta o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (Serp). Assim, quaisquer atos notariais e negócios jurídicos poderão ser disponibilizados eletronicamente.
O que isso tem de errado?
Em si, nada.
Porém, vejamos que a segurança dos atos praticados em meios virtuais é objeto de constantes debates.
A transformação digital trouxe consigo enorme empoderamento e, na mesma proporção, enorme responsabilidade.
Todos os dias, sistemas eletrônicos, públicos e privados, sofrem ataques hackers, sequestro de dados pessoais, falsificação de identidades eletrônicas e toda sorte de crimes cibernéticos.
O problema em todos esses casos é o mesmo: ausência de autenticação forte e mecanismo de assinatura digital robusto, seguro e moderno.
A lei quer simplificar, mas esbarra, ao seu modo, nos mesmos riscos de Júlio César com notável diferença. A presidente do Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, Giselle Oliveira de Barros, representante de quase nove mil titulares de cartórios, antecipou o que nos espera após a travessia do Rubicão, pois a lei permite que a venda de veículos e, banzemos todos, imóveis, seja realizada com o uso de assinaturas eletrônicas avançadas, aquelas que não têm a presença do Estado como elo garantidor da autenticidade, integridade, validade jurídica e não-repúdio das assinaturas.
Neste exato momento, o debate está aquecido. A mencionada lei determina que o acesso ou o envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet, deverão ser assinados com o uso de assinatura avançada ou qualificada de que trata o art. 4º da Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020, dando o condão para definição dos termos à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.
Em setembro, o CNJ realizou o Seminário Sistema Eletrônico de Registros Públicos, quando diversas autoridades e juristas avaliaram a nova lei e trataram da importância de inovações em âmbito digital para a prestação dos serviços extrajudiciais, sob a coordenação do Corregedor Nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão.
O encontro, que teve acesso presencial e mais de mil participantes online, contou com nomes como o Conselheiro do CNJ, Celso Fernandes Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que explicou a importância em diferenciar a interoperabilidade de sistemas eletrônicos e a perigosa centralização de informações em apenas um ambiente.
Também esteve presente o professor da Universidade de Frankfurt, Doutor Ricardo Campos, que cuidou de analisar a questão das assinaturas eletrônicas no Brasil, destacando a importância de se preservar a segurança jurídica por meio da opção correta sobre qual deve ser a assinatura digital a ser utilizada em cada meio.
O professor frisou que nos países da Europa Continental elegeu-se sempre o uso da assinatura digital qualificada para a transferência imobiliária, a que corresponde, no Brasil, ao certificado digital do tipo ICP-Brasil.
Todos os painéis seguiram a mesma métrica, qual seja a de dirigir as falas ao Corregedor Nacional de Justiça e às Juízas auxiliares Caroline Someson Tauk, Daniela Pereira Madeira e Carolina Ranzolin Nerbass e, assim, explicar os posicionamentos jurídicos, uma vez que cabe agora à Corregedoria Nacional de Justiça a regulamentação do tipo de assinatura eletrônica nessas transações.
O que se verificou na ocasião foi uma grande preocupação com questões relacionadas à centralização de informações e quais são os efetivos participantes da plataforma, donde foi possível extrair que se trata de uma tecnologia destinada a integração dos registros públicos, excluídos os serviços notariais e de protesto.
Resta na mão do órgão máximo correcional do Brasil a difícil missão de equilibrar uma relação de aprimoramento dos atos eletrônicos e garantir a mesma segurança jurídica existente no sistema físico de registros públicos.
Já sabemos o tamanho da batalha virtual que nos aguarda do outro lado do rio.
É hora de irmos?
Edmar Araújo é presidente executivo da Associação das Autoridades de Registro do Brasil (AARB), com MBA em transformação digital e futuro dos negócios, jornalista, consultor e membro titular do Comitê Gestor da ICP-Brasil.
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