O filho no purgatório | Boqnews

Opiniões

04 DE MARÇO DE 2011

O filho no purgatório

Por: Da Redação

array(1) {
  ["tipo"]=>
  int(27)
}

Localizado às margens da rodovia Rio-Santos, Caruara é um bairro com dois pais, o biológico e o de criação. Ambos têm sua importância, com papéis diferentes, mas se unem no desejo de controlar o filho ou, pelo menos, ficar com as glórias quando o garoto progride na vida. Nas crises, nenhum dos dois atende aos pedidos de socorro. Ou fingem responder aos gritos de ajuda. 


O pai biológico, nesta relação familiar conflituosa, é aquele que aparece de vez em quando, passa mão na cabeça do filho, tenta comprá-lo com um presente ou um sorriso para desaparecer por dias ou semanas. Este tipo de paternidade é exercida pela cidade de Santos, a quem o Caruara está vinculado em termos administrativos. É um cordão umbilical que abrange de recursos a políticas públicas.


O pai de criação tem menor aquisitivo, mas acompanha o dia-a-dia do filho em crise de identidade. Bertioga não é o pai ideal, daqueles que participam, como dizia o slogan da pomada para contusões musculares. É um parente para a solução da vida prática, de pequenos problemas.


Boa parte dos moradores de Caruara tem ligações afetivas e profissionais com Bertioga. O distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá, é o lugar mais próximo que chegam de Santos. Um braço de mar e um bom pedaço de terra separam Caruara da maior cidade da região, e não se trata de licença poética. Muitas crianças e até adultos nunca estiveram na cidade que veste a máscara de pai biológico.


Visito o Caruara com regularidade desde meados dos anos 90. O bairro tinha aquele charme que nos envia de pronto ao cenário idílico do interior. Pessoas sentadas nas calçadas no final de tarde para conversar sobre o próprio cotidiano. Crianças gravitavam em torno destas rodas de conversas com pipas, peões, bolinhas de gude e outros apetrechos em risco de extinção.


No Caruara, a escola era uma extensão da sala de muitas moradias. Professores e outros funcionários freqüentavam festas de aniversário, acompanhavam o crescimento das crianças e dividiam sentimentos e emoções com gente simples, a maioria migrante das regiões Norte e Nordeste.


O bairro também atraia famílias da “cidade grande”, que concretizavam o sonho de morar perto da natureza e abandonavam – fora do trabalho – a paranóia dos centros urbanos.


O filho cresceu, entrou na puberdade e tornou-se tão rebelde quanto o corpo em mutação adolescente. E sem pais para orientá-lo nesta fase insegura de metamorfose. A independência vira fardo quando se é imaturo, quando os pais não oferecem condições para que o filho ande com as próprias pernas.


A creche Noel Gomes Ferreira é um exemplo de como um pai biológico toca a campainha somente para cobrar seu filho. A creche foi inundada cinco vezes este ano. Em quatro ocasiões, as aulas foram suspensas. Por duas vezes, a água da chuva chegou a meio metro de altura. Geladeiras e outros equipamentos tiveram perda total.


A creche foi inaugurada há dois anos, de maneira provisória. A promessa seria construir outra unidade no terreno ao lado, que também pertence à Prefeitura de Santos. Até hoje, o terreno se parece mais com um laboratório de botânica a céu aberto do que com um rascunho de creche. E não há perspectiva de obras no horizonte.


Ser pai é também permitir que o filho desenhe o próprio trajeto. Ser pai é assumir a própria incompetência em conduzir a cria. É cortar grilhões e libertá-lo para crescer. Caruara foi amaldiçoado pela omissão, talvez por não render glórias ao pai. Nunca rendeu votos. Nunca definiu uma eleição.


O problema é saber se o pai de criação pretende, além de absorver a vida prática dos moradores, assumir o pagamento das contas do adolescente. Enquanto isso, o filho vivencia uma crise de identidade, como se estivesse no purgatório, em avaliação pelos pecados cometidos por quem o pariu. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Notícias relacionadas

ENFOQUE JORNAL E EDITORA © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

desenvolvido por:
Este site usa cookies para personalizar conteúdo e analisar o tráfego do site. Conheça a nossa Política de Cookies.