O
prédio fazia parte de um conjunto habitacional popular, daqueles
erguidos com material de segunda e à toque de caixa para garantir a
eleição do coronel da cidade. Bom
no pacote eleitoreiro entrava
o sargento do bairro, policial-candidato à vereador.
Depois
de cinco anos, a fachada do edifício estava desbotada, e o jardim da
entrada carecia de manutenção. Na área interna, as paredes
perderam a luminosidade da tinta original, completamente entregues às
manchas de infiltração, de dedos sujos (de adultos, diga-se) e de
fitas isolantes dos recados mal escritos e devidamente ignorados. Em
muitos andares, as paredes estavam descascadas sem previsão de uma
reforma, ao menos de emergência.
Foi
ali que Paulo Roberto resolveu morar logo depois do casamento. A
conta bancária não sustentaria uma prestação maior. As despesas
da festa de casamento, do apartamento financiado e da vida cotidiana
longe da casa dos pais faziam com que a rotina de representante de
empresa farmacêutica fosse ainda mais puxada.
A
esposa não podia trabalhar. Gravidez de risco. Paulo cuidava das
finanças, com visitas a farmácias, mas principalmente aos
consultórios médicos, onde se sentia no controle. Da timidez da
sala de espera ao bom rebolado no consultório.
Era
fácil convencer os médicos a adotarem e recomendarem certos
remédios. Bastava uma composição de lábia, algumas piadas e,
dependendo do sujeito, a promessa da viagem de final de ano para um
resort paradisíaco, com tudo pago pelo laboratório. O passeio era
para poucos, mas a fórmula de persuasão fora testada e aprovada,
sem contra-indicações.
O
terreno pantanoso era a própria residência. Na verdade, o prédio
onde morava. Sentia-se em um asilo, pois a maioria dos moradores
passara dos 65 anos. Ali, ao invés de clientes em potencial, via
adversários. Adversários em fim de carreira.
Quer
dizer: eles o viam como um forasteiro, como alguém que perturbaria a
ordem tediosa da comunidade. Eram quatro andares, sete famílias,
seis com idosos. O apartamento 32 foi desocupado na semana em que
Paulo se mudou, pois o vizinho morrera na sexta parada cardíaca.
Valia a discrição, mas ninguém deu falta.
A
imagem do novo vizinho começou a mudar quando ele passou a exercitar
a velha mania: fazer limpeza geral no apartamento e jogar muitas
coisas fora. Mania porque despejava no lixo objetos em excelente
estado, novos ou com defeitos quase imperceptíveis. Ele via como
mudança de ares, mesmo que fosse apenas um jogo de pratos. A prática
acontecia aos sábados à tarde ou aos domingos pela manhã. Dependia
do nível da irritação por estar em casa.
Cada
vez que descia com sacolas para o lixo, o alarme da vizinhança
emitia um código silencioso. Bastava que fechasse a porta de casa,
que os vizinhos desciam para remexer no lixo. Copos, pratos,
talheres, quinquilharias para casa, tudo redecorava os demais
apartamentos.
Numa
destas faxinas, Paulo Roberto se livrou de dezenas de sacolas vazias
de qualidade, por sinal do laboratório farmacêutico. Uma
senhora as recolheu e aumentou os lucros do bazar da igreja do
bairro. Cada sacola saiu a R$ 1. O logotipo em inglês passava fácil
por griffe de shopping.
O
lixo, transformado em decoração de última hora, serviu de
passaporte para que Paulo Roberto fosse cumprimentado pelos outros
moradores. Alguns até puxavam papo no hall do prédio. Numa ocasião,
um vizinho comentou que estava com dificuldades no casamento. A
idade não permitia mais aquele furor da madrugada.
Paulo achou intimidade
demais. Ficou com esta história na cabeça por dias e concluiu: –
Isso se resolve fácil.
Na semana seguinte, ao
encontrar o mesmo senhor, deu a ele algumas pílulas azuis e
recomendou: – Não tome mais do que uma! E cuidado com o coração.
Para Paulo, a gentileza
saiu de graça, pois aquelas pílulas vinham da empresa como amostra
e eram inúteis para ele. Para o vizinho, a retomada de uma vida que
julgava enterrada.
A pílula fez mágica!
Atendeu ao desejo, à maneira de cada um. Como a notícia se
espalhou, a campainha do apartamento de Paulo passou a tocar nos
horários mais impróprios: meia-noite, seis e meia da manhã de
domingo. Uma vez, Paulo socorreu um vizinho há quatro da manhã do
primeiro dia do ano. No Carnaval, antes de viajar, teve que deixar
pílulas na caixa de correio.
Se quisesse, Paulo não
precisava almoçar mais em casa. Bastava revezar a refeição nos
demais apartamentos. Tinha que recusar convites para batizados,
enterros, aniversários de netos, churrascos na área de serviço
para garantir o final de semana com a esposa.
O representante de
laboratório farmacêutico, sempre uma figura anônima nas salas de
espera de consultórios, se sentia uma celebridade no prédio. A fama
se espalhou pelo resto do conjunto. Não pagava mais pão e leite na
padaria. Salvou o casamento do dono, além de colaborar para que ele
tivesse uma amante 15 anos mais nova. Na banca e no açougue, pagava
no fim do mês. Comprava fiado.
A pílula azul o
transformou no curandeiro do local. E para a família toda. Eram
remédios para dor de cabeça, aquele xarope para a tosse do moleque,
a garantia de uma digestão tranquila depois da feijoada de sábado.
O remedinho da pressão que custava uma fortuna! Dava até conselhos
informais de prevenção a certas doenças. Indicava médicos de
confiança e remédios em promoção.
No mês passado, recebeu
um telefonema da empresa. O diretor regional informava que, devido a
nova política de remanejamentos, Paulo Roberto seria transferido
para o Vale do Ribeira. A mudança era para ontem. Lá, teria um
salário maior e moraria numa casa com o aluguel pago pela firma. Um
carro também ficaria livre para que rodasse pela região. A oferta
irrecusável para o endereço pouco requisitado.
Paulo ficou sem rumo,
mas acatou a mudança. Teria que pensar na carreira e não tinha
proposta mais consistente. Como o filho nasceria em breve, conversou
com a esposa. Mudaram-se na semana passada. Avisaram apenas os mais
chegados, pois não desejavam festa de despedida.
No dia seguinte, a crise
no prédio! Um recado deixado pelo síndico nas escadarias foi lido e
comentado pela primeira vez. Paulo foi embora sem se despedir. O
assunto do dia, pelo menos. Alguns até comentavam a boca pequena
as possíveis teorias da mudança.
Os mais religiosos
diziam ter perdido o anjo da guarda. Os sensatos lembravam as filas
do sistema público, tortura que julgavam extinta por causa do
vizinho-fornecedor. Os fiéis da pílula azul sabiam o que comprar e
o ponto-de-venda, mas temiam ser descobertos por esposas e amantes ou
desequilibrar o orçamento, já que não entravam na farmácia há
tempos.
No Vale do Ribeira,
Paulo Roberto não tinha um condomínio para conquistar. As casas em
volta eram imóveis-dormitório de quem trabalhava em outras
localidades. Depois das nove da noite, silêncio absoluto para uma
nova (velha) vida obscura e anônima.
No prédio onde morou,
todos se recolhiam mais cedo, em luto, mas também por não ter o que
fazer durante a madrugada, exceto virar para o lado e adormecer. Para
que tocar a campainha do vizinho a essa hora da noite?
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