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04 DE AGOSTO DE 2021

O sonho de Saturnino

Por: Da Redação

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Santos, sexta-feira, 12 de agosto de 1910. Todos já haviam partido para casa, exceto o chefe da repartição, o Dr. Francisco, como a maior parte dos empregados se referiam ao engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. Ele ainda estava debruçado sobre um imenso mapa, de Santos, que havia terminado de concluir algumas horas antes. Seus olhos buscavam por detalhes que, porventura, deixara escapar. Saturnino era afamado por ser meticuloso e não gostava de deixar brechas em suas propostas, permitir que houvesse pontos que não pudesse defender, caso houvesse críticas e apontamentos. O chefe do maior projeto de recuperação sanitária da história da cidade, por incrível que pareça, ainda tinha desafetos, gente jogando contra dentro da própria Câmara Municipal de Santos. O mapa que acabava de desenhar continha sua proposta de urbanização para a parte leste da ilha de São Vicente, a chamada Barra, que começava a ser ocupada gradativamente por residências.

O engenheiro via com preocupação este avanço urbano para aquela área razoavelmente virgem. Era preciso, enfim, evitar uma ocupação sem planejamento que, aliás, foi o ponto chave para os problemas que Santos juntou a partir da segunda metade do século 19, nas áreas centrais, que culminaram em epidemias e a urgência de um processo de saneamento básico.

Saturnino estava decidido em oferecer a Santos um futuro equilibrado neste aspecto de qualidade de vida. Outra questão que envolvia o projeto era o planejamento do sistema de esgoto futuro desta parte da cidade que ainda iria nascer.

Santos, em 1910, ainda estava majoritariamente concentrada no velho sítio da vila (entre o Valongo e a região do Outeiro de Santa Catarina), com alguns avanços na direção da Barra (nome que davam para a atual região da orla da praia).

Para o leste, já existiam o Paquetá e a Vila Nova. Na direção sudeste, a Vila Mathias e o novíssimo Macuco, que começavam a ganhar forma de bairro, com arruamentos criados e homologados pelo município. Nos lugares mais próximos da crista do mar, Gonzaga e José Menino também já tinham seus casarios e algumas ruas e avenidas já se faziam presente desde cerca de 1890.

O grande problema é que as quadras e lotes nestas regiões vinham sendo formados sem a perspectiva de criação de áreas verdes, de grandes praças, para que a cidade não deixasse de “respirar” no futuro. Os famosos jardins da orla, então, nem eram cogitados nesta época. Pelo menos nas cabeças de todos, à exceção de Saturnino de Brito.

Olhando o mapa do engenheiro, confrontando com os dias de hoje, percebemos que boa parte de sua ideia foi colocada em prática, mas ainda muito longe do sonho verde do competente sanitarista.

Sim, Saturnino foi o primeiro a imaginar a faixa de orla junto à areia da praia da Barra completamente ajardinada. Esse sonho demorou para ser concretizado e teve até que ser debatido junto ao governo federal. Graças a Vicente de Carvalho, a coisa andou e hoje podemos nos considerar privilegiados de possuir este verdadeiro cartão postal (veja artigo sobre a luta de Vicente de Carvalho). Na planta de 1910, Saturnino sugeria a ocupação de toda a extensão praiana.

Os canteiros ajardinados eram bem encorpados na altura dos canais 1, 2 e 3, e iam afinando na direção da Ponta da Praia, terminando, na concepção do engenheiro, na altura da antiga Escola de Aprendizes Marinheiros (Museu de Pesca). É que mais à frente, onde estão os clubes de regatas, iniciava-se mais um complexo de áreas verdes, que penetrava na direção do atual Rebouças.

Saturnino nem de longe imaginaria que aquele espaço seria ocupado, a partir do final dos anos 1930 pelo Orquidário Municipal, a partir da imensa coleção de orquídeas e outras plantas nativas deixada pelo comendador Júlio Conceição após sua morte (em 1938). De qualquer forma, ele previa uma grande área verde no entorno da estação de pré-condicionamento de esgoto que existe até hoje no bairro do José Menino.

Trechos substanciosos da avenida Nilo Peçanha, incorporando parte das atuais ruas Dom Duarte Leopoldo e Silva, Manoel Elias Ruiz e Alberto Veiga, chegando às margens da atual Rua Benedito Ernesto Guimarães, no bairro do Marapé, não estariam ocupados por residências, mas por um imenso parque verde, com direito a lagoa artificial, para o lazer dos santistas.

Uma grande avenida eixo, nominada “Avenida Municipal”, arborizada em seu canteiro central, atravessaria o bairro, cruzando a atual Francisco Glicério (ali nominada como “Avenida Saneamento”) e chegando à Avenida Ana Costa (já existente), justamente no trecho onde hoje temos a Praça da Independência (que na época nem sonhava existir). Esta avenida “Municipal”, ao cruzar com a Pinheiro Machado, teria uma rotatória também ajardinada.

Na proposta urbanística de Saturnino de Brito, a ideia era construir uma extensa e larga avenida acompanhando o leito dos trilhos da Southern São Paulo Railway (que mais tarde se chamaria Sorocabana e depois Fepasa). A via ganharia o nome de “Avenida Saneamento, talvez pelo fato de praticamente ter seu início na área próxima à estação de pré-condicionamento de esgoto. Seu canteiro central foi previsto para ser enorme, ostentando cerca de 150 metros de largura totalmente ajardinada (o equivalente a três campos de futebol profissional lado a lado).

Era algo muito parecido com que o urbanista Lúcio Costa acabou planejando para o eixo central de Brasília. A longa avenida terminava na altura do Canal 3. Ali, outra área extensa e ajardinada se fazia presente.

Era praticamente o complemento da avenida Saneamento, que descia na direção da Ponta da Praia, fazendo a mesma função que tem hoje a avenida Afonso Pena. Esta via também apresentava o conceito de possuir um eixo largo, mas um pouco menor do que o pedaço entre o José Menino e o canal 3 (ali a equivalência de dois campos de futebol lado a lado, ou cerca de 100 metros).

Na altura dos canais de drenagem, tanto o de número 4 quanto o 5, havia geometrias de intervenção urbanística privilegiando o verde, por meio de praças que serviam de rotatórias viárias. Na altura do canal 6, a via bifurcava em outras duas, a avenida Sul e a avenida Leste, ambas também com canteiros centrais verdes e largos. A Sul findava na área dos clubes náuticos, enquanto a Leste findava na altura do atual ferry-boat.

Em 1910 ainda não existia o Parque Balneário que tanta fama conquistou para o mundo, de tamanho imponente e elegante. O que existia no local era um hotel mais modesto, como um bangalô de madeira. Por isso, Saturnino imaginou o trecho de orla da Ana Costa abrigando um parque, de nome “Júlio Conceição”, uma vez que o comendador era dono de muitas terras naquele trecho da cidade.

Além do já exposto, Saturnino pensou em salpicar a área leste de Santos com outras pequenas praças e áreas arborizadas. Uma delas era a envoltória do Morro dos Lima, na confluência dos canais 1 e 2. Havia também a previsão de uma grande praça no canal 3, perto das instalações pertencentes à Companhia City (na altura da rua Mato Grosso).

A briga de Saturnino com a Câmara

O engenheiro ficou extremamente satisfeito com o resultado de seu trabalho e apresentou-o como sugestão urbanística para a Câmara Municipal. Cabia destacar que o fato de os eixos viários serem projetados com grande largura, e canteiros centrais ajardinados, serviam, além da questão “verde”, também como uma espécie de facilitador para o acesso aos ramais de captação do esgotamento sanitário e distribuição de água potável. Saturnino insistia na discussão de tornar Santos uma cidade planejada neste aspecto importante, o subterrâneo de serviços.

No entanto, tamanha quantidade de desapropriações conflitava com uma enorme gama de interesses, principalmente os especuladores imobiliários, o que acabou impedindo a ideia de avançar. Saturnino ficou tão revoltado que acabou sendo duro com boa parte dos vereadores, principalmente seus desafetos.

Em 1914, o jornalista e escritor Alberto Sousa, chegou a ser contratado para elaborar uma série de artigos que culminou no livro “A Municipalidade de Santos perante a Comissão de Saneamento”, com teor bastante ostensivo contra as argumentações do engenheiro contratado pelo Estado. “O digno chefe da Comissão de Saneamento esqueceu-se de que, segundo seu mestre, só há um princípio absoluto: é que tudo é relativo. O seu projeto é impraticável pelo espírito de antipático absolutismo com que foi elaborado. Não é relativo ao nosso estado atual jurídico e nem às nossas atuais condições econômicas”, escreveu num trecho dos artigos.

No final da briga, Saturnino perdeu a queda de braço e não conseguiu emplacar sua proposta de forma absoluta. Depois de concluído o projeto de saneamento da cidade, o engenheiro foi embora e não pode testemunhar o surgimento dos jardins da orla da praia, a única das ideias que faziam parte de seu sonho para Santos, hoje um cartão postal que orgulha todos os santistas.

Sérgio Willians é jornalista e escritor, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e da Academia Santista de Letras. Também é membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e autor do site www.memoriasantista.com.br

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