Os prédios respiravam pelas vozes, pelos passos, pelo som agudo do giz que riscava as lousas verdes. O lugar transpirava pelos sonhos de uma carreira profissional, pelo desejo de voltar à escola depois de anos, pelos gritos e gargalhadas dos moleques que marcaram gols na quadra em anexo, depois estacionamento.
O som mudou no bairro da Pompéia, em Santos. As noites ficaram mais silenciosas. Não há tilintar de copos nos bares entre as ruas Maranhão e Piauí. Não ocorrem mais congestionamentos por volta das 19 horas e das 22h30. Sumiram os corpos entrelaçados nas esquinas. As conversas em voz alta e as gargalhadas em volta das mesas engrossaram o acervo da história oral.
Durante o dia, a serenidade da rua Euclides da Cunha foi trocada pelos decibéis perversos da demolição. Os prédios da antiga Faculdade de Comunicação e do Liceu Santista morreram. Seguirão congelados em fotos ou ainda vivos em vídeo. Pouco diante do tamanho das ruínas. São escombros que alicerçaram a vida de milhares de pessoas por mais de 40 anos. Um buraco no meio da história do bairro e da cidade.
A demolição sorri pela crueldade. Atravessou a rua sem pudor. Sangra também o antigo prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFIS). Durante o dia, é possível ouvir os gritos de dor do concreto e das vigas de ferro que se partem diante das batidas mecânicas da mudança urbana.
Os prédios morreram pelas mãos do crescimento imobiliário paranóico. Tornaram-se peças descartáveis. No lugar, serão três torres, de 42 andares. Os edifícios, um dia imponentes, eram apenas formigas diante dos elefantes que se aproximam. O passado enterrado deu vez à ilusão dos que se julgam mais próximos do céu.
Passei 14 anos da minha vida naqueles edifícios, descontados pequenos intervalos de ausência. A primeira vez que entrei lá foi em 1991, aos 17 anos. Eu e meu primo Júnior havíamos passado no vestibular. Eu, em Jornalismo. Ele, em Letras. A alegria de dois moleques que tinham vencido a primeira etapa. A tensão de ouvir da funcionária a lista de documentos necessários para estudar por lá. A expectativa de ter a cabeça raspada, o primeiro ritual que nos tornaria universitários.
Na Pompéia, fiz duas graduações e dei aulas por seis anos. Trabalhei e estudei em todos os andares do prédio da Facos. Tive aulas por dois anos no prédio da Fafis. Ali, fiz amigos que se transformaram em irmãos. Ali, tornei-me jornalista com o empurrão de professores que me mostraram um universo antes distante e inalcançável.
Evito passar pela rua Euclides da Cunha. Naquela região, construi parte de minha identidade. O vazio no cenário provoca a falsa sensação de perda. Resta idolatrar a memória e seu caráter seletivo. Lembranças que ressuscitam e sustentam uma parte de mim.
Conheci a mulher com quem me casei em um dos prédios. Fiz um discurso de formatura. Anunciei o nascimento de minha filha. Preparei minhas primeiras matérias em máquinas de escrever. Os textos esculpidos nas antigas laudas amareladas, que não permitiam erro. Até hoje, tenho saudades do barulho das Olivettis. Som que nenhum PC poderá reproduzir.
Os prédios só existem por viveram de pessoas e para pessoas. Nós e os edifícios nos alimentamos das lembranças, das angústias, dos desejos, dos sonhos, das decepções, dos flertes, da sede intelectual, dos conflitos com colegas para revirar a mente, dos choques que derrubaram preconceitos tão enraizados.
Evito passar pela rua Euclides da Cunha há mais de um ano, quando os prédios foram fechados. Entraram em estado vegetativo. Entraram em coma irreversível. A escuridão se apoderou do prazer de conviver com pessoas todos os dias no mesmo lugar. Gente que passou boa parte da vida com gente que não seria família em outro endereço.
Os prédios hoje vácuo na paisagem eram uma aldeia de pares, de gostos semelhantes, de prazeres próximos e compartilhados. Da sinuca ao grupo de estudos. Da cerveja ao futebol nos finais de tarde de sábado após as aulas do professor Sergio Guidi, dadas na sala conhecida por ter uma pilastra do meio. Das conversas no bar do Beto ao pastel engordurado da esquina.
O bairro da Pompéia caiu de joelhos diante do progresso cinza e esguio. As torres, castelos da modernidade, trouxeram a ilusão do crescimento econômico, desfeito de início pela mão-de-obra de outras praças.
Os castelos do presente redesenharam os pequenos feudos. Trânsito enforcado, lixo e consumo de água em excesso, outros interesses, outros desejos, novos sonhos. São sinais de um bairro que será cosmopolita apenas na carcaça de concreto e ferro.
Os prédios antigos ruíram com a identificação com aquele espaço. Não há mais o que fazer por ali. Passar por aquele trecho para exercitar o saudosismo soa como auto-flagelação. Nem lápide haverá para marcar o final de um episódio. Aquele pequeno universo que reflete e é reflexo de uma cidade que optou pelo crescimento sem limites. Que pagará o preço de um tempo diferente. Tempo que talvez muitos não se encaixem, deslocados e reféns dentro de casa.
Parte da história da Pompéia são escombros, prestes a encher caçambas de caminhões. As experiências são entulhos de um passado que merecia melhor valor. A nova história, por enquanto, é reescrita pelas máquinas pesadas, nascidas para desconstruir, borrachas que eliminam símbolos da cultura local, gravados nas paredes que abrigaram milhares de estudantes, visitantes e funcionários.
Evito passar pela Pompéia. Por enquanto. Tenho dúvidas se as mudanças serão benéficas para o bairro. Não posso afirmar se a nova história será adequada às tradições de gente que, mesmo sem saber, deu vida conjunta a um pedaço de outros tempos individuais e coletivos.
A Pompéia do futuro-hoje pode não ter o rosto e o corpo que se deseja. Sobram, além de escombros, o silêncio da resignação ou o caminhão de mudança. Para quem chega e para quem está lá.
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