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Opiniões

20 DE JANEIRO DE 2017

Os presos errados

Por: Da Redação

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Os carrascos deste século não usam capuzes pretos. Eles expõem seus rostos, protegidos com status de “autoridades”. Os carrascos não andam armados de foices ou posam ao lado de guilhotinas ou forcas. Eles prendem canetas, muitas vezes importadas, aos paletós, para degolar suas vítimas com assinatura em papel timbrado.

Os carrascos não sentem remorso, culpa ou temem ser estigmatizados pelo que fazem. Eles sorriem, falam em pausas programadas, oferecem café e água antes de fingir que negociam rendição. Para os carrascos, as decisões são tomadas com antecedência. Eles recebem o pedido de execução e seguem a cartilha na qual nunca consta misericórdia.

Os carrascos estiveram em Santos, na semana passada. Treinados para ignorar o passado alheio e negar as próprias mentiras recentes, eles vieram com o discurso costurado em pele de carneiro. Era a hora de matar a Cadeia Velha de Santos. Matar com um único disparo, no coração.

Atirar no coração é tática de quem deseja liquidar com a essência histórica do condenado. Antes, porém, foi preciso torturar a Cadeia Velha. Fazê-la entender que 35 anos de vida como formadora de artistas não apagam o passado anterior de prisão. Os carrascos absorvem, talvez pela lavar os próprios pecados, a raiva do que nunca viveram.

Admitamos: os torturadores são criativos, ricos em se aproveitar dos detalhes. Primeiro, reabrem a Cadeia, injetam uma dose de esperança de que a essência seria preservada, depois de meses de uma obra arrastada, dentro das tradições brasileiras.

O passo seguinte é abrir para fechar. Dinheiro é a desculpa-coringa. Empurrar para o outro; no caso, a Prefeitura, que gastou como dondoca em shopping e vive de bolso murcho. Novamente, a dança em torno do dinheiro, que some feito ilusão de mágico para crianças.

Os carrascos, porém, são seletivos. Eles se esquecem, por conveniência, que a Cadeia Velha foi morada de presos políticos, de gente que lutava pelas ideias que os carrascos tanto abominam, que viram pústulas tamanha a alergia à liberdade.

A crueldade se esgueira pelos sorrisos amarelados, pela falsa descontração de conduzir uma morte lenta e dolorosa. 35 anos de vida como formadora de artistas não seriam extintos da história. Virariam rodapé dela, com a lembrança viva pelo Projeto Guri, que seria transferido para as dependências de uma Cadeia morta.

O Projeto Guri, antes na Zona Noroeste, criará mais uma despesa, desta vez para as famílias que veem na Cultura um porto seguro de uma rotina na qual se contam as moedas. E agora, viajar atrás de Cultura em um ônibus mais caro? Os burocratas de salários europeus só enxergam o mundo pela janela de vidro envelopado.

Quando o moribundo cambaleia pelo tiro no peito, os carrascos descem a marreta na nuca. Na dúvida, é preciso garantir que não haja ressurreição. A marreta é da marca Agem, a Agência Metropolitana da Baixada Santista. A serpentina que envolve com carinho a Metropolização, a melhor fantasia política dos últimos 20 anos.

Os carrascos são perversos. Não bastou sorrir para os artistas enquanto assassinavam a Cadeia Velha de Santos. Para dar o recado aos “subversivos” – palavrinha do século passado, mas retomada por quem ainda acha que vive nele -, a ordem foi expressa: lotar a Cadeia com burocratas, com gente que nunca foi apresentada à arte e, se foi, não conseguiu estabelecer o mínimo diálogo.

Lotar a Cadeia de seres que se alimentam de projetos, de programas requentados, de café e reuniões e mais cafés e reuniões e comissões, mas que passam mal de pedir auxílio médico quando ouvem que é necessário trabalhar na vida prática.

A Cadeia Velha de Santos lacrimeja e pede socorro aos artistas, mas sinto que os sujeitos com algum poder na cidade os abandonaram no meio da Praça dos Andradas. Os artistas têm a voz, o suor, a criatividade e a força de trabalho para medicar a Cadeia, hoje sonhando em contradizer suas origens.

Se no passado a Cadeia Velha prendia quem fazia política, hoje ela reza para que expulsem os políticos de dentro do seu ventre.

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