I
Se a poesia é a transfiguração do sentimento, conforme definição dada pelo filósofo, historiador e crítico italiano Benedetto Croce (1866-1952), um bom exemplo disso é Ponto de Fuga & Outros Poemas (São Paulo, Inmensa Editorial, 2024), da poeta sul-mato-grossense Raquel Naveira, coletânea de poemas originalmente publicados em dez de seus livros, que reúne também peças inéditas, os chamados poemas “vegetais”, que, aliás, já estavam presentes em obras anteriores, como “Junco”, de Casa de Tecla (São Paulo, Escrituras, 1998), em que ela diz: Sou junco / Delgado e flexível / à beira do banhado.
A propósito da reflexão de Croce, é de se lembrar que todos os quesitos por ele formulados para definir o vocábulo transfiguração estão presentes nos versos de Raquel Naveira, ou seja, fantasia criadora, intuição, sentimento, inteligência e outros.
Enfim, trata-se de uma poesia eivada de linguagem onírica que a autora alcança ao procurar demonstrar seus sentimentos através de poemas.
Como exemplo, leia-se este intitulado “Sanga Puitã”, que faz parte do livro Nunca–Te–Vi (São Paulo, Estação Liberdade, 1991), em que a poeta procura recuperar suas origens e vivências próximas a comunidades guaranis:
Esse nome, Sanga Puitã / Lembra sangue, / Pitanga, / Cravo vermelho, / Lábio que se pode mastigar / Como polpa de uma fruta. / Esse nome, Sanga Puitã, / Lembra a paraguaia exuberante / Na sua pele morena, / Nos seus voos de renda, / Garrafas verdes / Equilibradas sobre seu sorriso doce. / Esse nome, Sanga Puitã, / Lembra guarânias quentes / Que falam sobre presentes de amor, / Lagos claros, / Índias de cabelos negros, / Combatentes de guerra. / Sanga Putiã… / Será expressão guarani? / Significará algo como abelha, / Sol da manhã, / Bordado nhanduti? / Esse é o mistério de hoje…
Aqui se percebe a sua intenção de dar ao poema um ritmo indiscutivelmente guarani, ao mesmo tempo em que busca interpretar as dores e prazeres daquele povo.
Constitui também uma homenagem àquele povo indígena: sanga puitã vem do guarani zanza pytá, ou seja, regato vermelho, que é nome também de um município paraguaio.
Aliás, Sanga Puitã denomina um distrito do município brasileiro de Ponta Porã, que faz fronteira com Zanza Pytá, que fica no lado paraguaio.
II
Dona de um currículo invejável e vasta obra publicada, a poeta faz incursões que mostram a dimensão do seu gesto político, como observa o professor, poeta, ficcionista e editor Anelito de Oliveira, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no prefácio que escreveu para esta obra, ao ressaltar “a mística, o erotismo, a memória, o desejo, o lirismo, a comunhão e a alteridade” como questões comuns no fazer poético da autora.
É o que se pode constatar no poema “Demoiselles D´Avignon”, inspirado em quadro do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), um dos maiores mestres da arte do século XX:
São prostitutas / Essas demoiselles / Expostas / No bordel da vida; / Nos seus rotos malformados, / Ferozes, / Há indecorosas propostas / E em suas pernas abertas / Um convite / Ao labirinto, / À luta com fantasmas. / Ficam ali na tela: / Paradas, / Plácidas, / Paralisantes, / Grudam em nós / Atraindo / Até a servidão completa. / (…) Eessas prostituas, / Demoiselles, / Sugam treva, / Lama, / Força bruta / Para dentro de seus peitos / Que se oferecem como frutas / E de seus buchos negros / De entranhas ocultas. / Um touro de energia despótica, / Refocilou sobre esses corpos, / Com espanto e terror; / Depois, insatisfeito, / Entre desejo e dor, / Inovou a pulsão erótica / Dessas demoiselles, / Dessas prostitutas / Supremas e enxutas.
III
Entre os inéditos, estão poemas que formam dois livros à parte e que levam os títulos Alma de Ipê e Fotos de Saturno.
O primeiro é uma homenagem da autora a sua cidade natal, Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, também conhecida como “Cidade dos Ipês”. Segundo ela, a inspiração surgiu de sua observação dos quadros de ipês pintados pelo artista plástico sul-mato-grossense Isaac de Oliveira (1950-2019). E de sua paixão pelos vegetais, sentimento, aliás, que já estava nos poemas de Casa de Tecla.
Nos inéditos, esse sentimento aliado a forte erotismo está patente no poema “Noiva”:
Casei-me com um ipê branco, / Suas raízes fincaram-se em meu sexo, / Suas ramagens / Se espalharam pelos meus seios, / Formaram guirlandas / No meu pescoço / e um véu sobre meus ombros. / Penetrei passiva / Num mar de leite / E lavandas. / A noite era de lua, / De bruma / E de glacê.
Já Fotos de Saturno reúne, além de poemas “vegetais”, outras peças poéticas que primam pela ternura, como se vê em “Lua III”:
Da lua, de repente, / Podem descer mulheres nuas e brancas / Numa luz fosforescente, / Numa poeira de sal; / O oceano terá convulsões, / Marés-altas / E cobrirá nossas cabeças / Com um véu de espuma.
Ponto de Fuga & Outros Poemas faz parte da coleção Infame Ruído da Inmensa Editorial que é dirigida prioritariamente à formação em escolas públicas de leitores da poesia de autoras e autores situados à margem dos grandes centros econômicos e culturais. O título da coleção é apropriação de um verso do poeta árcade Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), colega de ofício literário do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ambos participantes da Conjuração Mineira de 1789.
IV
Raquel Naveira (1957), nascida em Campo Grande, é professora universitária, escritora, ensaísta, poeta e crítica literária.
Formada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, em 1976, é mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001), de São Paulo.
Graduou-se em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy, da França, em 1981, e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco, em 1994, onde aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa por 19 anos.
Residiu no Rio de Janeiro, onde lecionou na Universidade Santa Úrsula e, em São Bernardo do Campo-SP, na Faculdade Anchieta.
Deu também aulas na pós-graduação da Universidade Nove de Julho (Uninove), de Comunicação Aplicada na Faculdade Hotec e na pós-graduação da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo.
Ministrou palestras e cursos em escolas e em várias instituições culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida e Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Na Academia Paulista de Letras, participou do Ciclo de Memória da Literatura, discorrendo sobre o trabalho das romancistas Maria de Lourdes Teixeira (1907-1989) e Stella Carr (1932-2008).
É autora de quatro dezenas de livros de poesia, crônicas, ensaios e romances, entre eles: Abadia, poemas (Editora Imago,1996), e Casa de Tecla, poemas, obra indicada ao Prêmio Jabuti de Poesia, pela Câmara Brasileira do Livro. Escreveu o livro infanto-juvenil Pele de Jambo (1996) e o de ensaios Fiandeira (1992).
Publicou os romanceiros Guerra entre irmãos (1993), poemas inspirados na Guerra do Paraguai (1864-1870), e Caraguatá (1996), inspirados na Guerra do Contestado (1912-1916), conflito armado entre os Estados de Santa Catarina e Paraná, a partir de luta entre posseiros e pequenos proprietários pela posse de um território, livro que inspirou o filme de curta-metragem Cobrindo o Céu de Sombra, monólogo com a atriz Christiane Tricerri.
É autora de: Via Sacra (1989); Fonte Luminosa (1990); Nunca–Te–Vi (1991); Sob os Cedros do Senhor (1994); Canção dos Mistérios (1994); Mulher Samaritana (1996); Maria Madalena (1996); O Arado e a Estrela (1997); Rute e a Sogra Noemi (1997); Intimidades Transvistas (1997); e Senhora (1999), que recebeu o prêmio Jorge de Lima-Brasil 500 anos, concedido pela Academia Carioca de Letras e pela União Brasileira de Escritores (UBE), do Rio de Janeiro, em 2000.
Publicou ainda: Stella Maia e Outros Poemas (2001); Xilogravuras (2001); Maria Egipcíaca (2002); Casa e Castelo (2002); Tecelã de Tramas – ensaios sobre interdisciplinaridade (2005); Portão de Ferro (2006); Literatura e Drogas – e outros ensaios (2007); Guto e os Bichinhos (2012); Sangue Português (2012); Álbuns de Lusitânia (2012); e Jardim Fechado – uma antologia poética (2016), livro comemorativo dos seus 30 anos de carreira literária, entre outros. Em 2002, lançou o CD Fiandeiras do Pantanal, em que declama seus poemas, acompanhada por craviola e pela voz da cantora Tetê Espíndola.
Nos últimos tempos, lançou Leque Aberto (2020), Romanceiro de Cabeza de Vaca: o andarilho das Américas (2020) e Manacá (2021), crônicas em que mescla em prosa poética tradição e modernidade. Em 2022, publicou No Mundo Encantado de Luciana, infanto-juvenil e, em 2023, Mundo Guarani – fragmentos de uma alma da fronteira, obra de memória que está entre a crônica, a novela e o romance e obteve o Prêmio João do Rio, da UBE, do Rio de Janeiro, narrativa que traz à tona o universo da fronteira entre o Brasil e o Paraguai, em que recupera suas vivências com a herança indígena ainda extremante forte na cidade de Bela Vista, na fronteira com o Paraguai, à beira do rio Apa.
Pertence à Academia Sul-mato-grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras, de São Paulo, à Academia de Letras do Brasil, de Brasília, à Academia de Ciências de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil. Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado-MS, Jornal de Letras-RJ, Linguagem Viva-SP, Jornal da ANE-DF e O Trem-MG, entre outros.
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Ponto de Fuga & Outros Poemas, com apresentação de Anelito de Oliveira e seleção de Cláudio Daniel. São Paulo, Inmensa Editorial, 132 páginas, R$ 50,00, 2024. Site: www.inmensaeditorial.com.br E-mail: [email protected] – E-mail da autora: [email protected]
Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Robbin Laird, editor, 2024), publicado na Inglaterra. E-mail: [email protected]
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