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Opiniões

30 DE SETEMBRO DE 2025

Uma obra para ficar nos anais

Adelto Gonçalves

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I

Uma obra que, segundo o seu autor, é fruto de um encontro de muitos livros, autores e personagens é com o que o leitor vai se deparar em De pulchro et apto: O Manuscrito Perdido de Santo Agostinho – A tese que virou romance (Curitiba, Artêra Editorial/Appris Editorial, 2025), do jornalista e professor Waldecy Tenório.

Publicado em primeira edição em 2019 pela Desconcertos Editora, de São Paulo, o livro, resultado de um projeto inicial para uma tese de livre-docência, foi totalmente reescrito e revisado, inclusive com alteração do título que ganhou as palavras De pulchro et apto, que querem dizer “o belo e o conveniente” e intitulariam o manuscrito desaparecido do teólogo e filósofo Aurélio Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho, bispo de Hipona, cidade da província romana da África, considerado o inventor da autobiografia, cujas obras foram decisivas para o desenvolvimento do cristianismo em seus primeiros tempos.

Como o autor explica no texto de apresentação, a obra partiu da fascinação que ele sempre teve pela personagem La Maga, do romance Rayuela, do argentino Julio Cortázar (1914-1984), e por Ludmila, leitora-personagem de Se um viajante numa noite de inverno, do jornalista e escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985).

Foi a partir do encontro com La Maga, através da leitura de Rayuela, que Tenório sentiu a necessidade de escrever a obra.

E, para tanto, também foi decisiva a ajuda de Jules Maigret, o lendário comissário da Securité Française e personagem dos livros do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), para descobrir a pista do manuscrito nas entrelinhas de Confissões, de Santo Agostinho, e de O nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco (1932-2016), obra lançada em 1980.

Mas, como observa o autor, este livro é resultado de muitas leituras e de seu fascínio por autores como Homero (928a.C-898a.C), Shakespeare (1564-1616), Dostoiévski (1821-1881), Edgar Allan Poe (1809-1849), James Joyce (1882-1941), Virginia Woolf (1882-1941), Milan Kundera (1929-2023), Rolland Barthes (1915-1980), Jorge Luis Borges (1899-1986), Clarice Lispector (1920-1977), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e outros.

Sem contar um personagem do filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen, e o gato que aparece na poesia de Stéphane Mallarmé (1842-1898) sempre associado à contemplação e à indolência e que está citado em determinado parágrafo.

Por aqui, já se vê que o autor se trata de um voraz e erudito leitor que procura passar para as páginas as sensações que teve ao conhecer tantos e tão finos mestres.

Além dessa fascinação por autores clássicos da literatura mundial e brasileira que o tem tornado um pesquisador de mão-cheia, o que se destaca também na obra é o seu amplo conhecimento de temas ligados à teologia, a ciência que estuda Deus, as divindades e o sagrado, ainda que ele faça questão de se autodefinir, com ironia, como “um teólogo charlatão”.

II

Narrado em primeira pessoa, mas permeado por diálogos, O Manuscrito Perdido de Santo Agostinho pode ser definido como um monólogo interior livre, já que as personagens não seriam pessoas normais, saídas do dia a dia, mas inspiradas em protagonistas de livros atentamente lidos e relidos, ou seja, personagens de ficção.

Se pode ser definido como monólogo interior, o que se deve concluir é que as observações e os diálogos não passam de fluxo de consciência, funcionando como um solilóquio, já que o protagonista parece falar consigo mesmo e com personagens tirados de obras ficcionais, vivendo muitas vidas através dos livros.

Isso não quer dizer que esteja ausente o “eu” do autor, embora este se posicione atrás do narrador que leva o nome de Gabriel Blue.

Pelo contrário, o protagonista não deixa de homenagear um antigo colega de redação do jornal O Estado de S. Paulo, o jornalista e escritor Lourenço Dantas Mota, organizador de Introdução ao Brasil – um banquete nos trópicos (São Paulo, Editora Senac, 1999) e de outras obras, filho de Dantas Motta (1913-1974), “o poeta de Aiuruoca”, amigo íntimo de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

Enfim, o autor também não deixa de agir como poeta ao voltar-se para dentro de si e do mundo psíquico erguido com suas infinitas leituras de grandes obras.

Nesse caso, atua como o protagonista típico do romance lírico, em que “o narrador e a personagem se combinam para criar um “eu” no qual a experiência é moldada como imagens”, repetindo-se aqui o que o professor Massaud Moisés (1928-2018) observou a respeito do romance A Paixão Segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector, em A Criação Literária – Prosa II (São Paulo, Editora Cultrix, 2015, pp. 49/50), ao citar frase do autor norte-americano (nascido na Alemanha) Ralph Freedman (1920-2016), extraída de The Lyrical Novel (Princeton, Princeton University Press, 1966, p. 31).

É o que se pode comprovar com a leitura deste parágrafo que marca a abertura do capítulo III, dedicado à Cidade-Luz:

“Em Paris, fomos ao encontro de Maigret, La Maga nos levou primeiro para um passeio pela parte da cidade que chama de “minha Paris mítica”, onde conheceu Cortázar. Pensei no Recife mítico de Manuel Bandeira, mas ela não me deixou pensar, queria entrar logo no clima de Rayuela, rever a Pont des Arts, onde ficava horas debruçada sobre o parapeito contemplando a água e pensando em se atirar no rio. Tão romântico morrer no Sena. Queria rever Montparnasse, passar em livrarias, tomar café no bar do Louvre, enfim andar “por uma Paris fabulosa deixando-se levar pelos signos da noite”, como fazia quando morava por lá”.

Em outro capítulo (todos sempre breves), Gabriel Blue, alter ego de Tenório, carrega La Maga, Ludmila e o comissário Maigret para conhecer Olinda, cidade em que o autor viveu sua mocidade, fazendo-os subir e descer suas ladeiras, olhar o mar e entrar no Mosteiro de São Bento e na Sé.

Depois, conviveu com eles nos bares à beira-mar, entre copos de cerveja e aguardente, jogando conversa fora, sem deixar de falar de livros e mais livros, num diálogo muitas vezes interrompido pelo som dos trompetes e tambores do famoso Galo da Madrugada, bloco que ensaiava nas ruas para o carnaval que se aproximava.

III

Em resumo, a ideia que permeia a obra é que haveria determinados livros tão inventivos que mereceriam ter continuidade, talvez para que se pudesse decifrar alguns enigmas ou mesmo conhecer os anos de senectude de personagens das quais só conhecemos os tempos de juventude.

Nesta obra, o que move o autor ou o seu alter ego é saber que fim teria levado aquele manuscrito medieval que poderia ter sido confiscado por autoridades eclesiásticas ou permanecido escondido ou perdido em alguma biblioteca daquele tempo ou ainda roubado por traficantes ou mesmo destruído por algum incêndio ou por alguma alma enlouquecida.

Não se vai aqui contar o desfecho para que o leitor não perca o prazer de encontrá-lo, mas o que se pode adiantar é que a obra ratifica a ideia de que há livros que mereceriam uma continuação, ideia que está implícita no conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges, que consta do livro Ficções (1944), mas que foi originalmente publicado na revista argentina Sur, edição de maio de 1939.

IV

Para Júlio Pimentel Pinto, professor livre-docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e ex-colega de Tenório no corpo docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, o autor, “esse pequeno deus, merece mesmo elogios”, observando que “escrever um livro inteiro baseado em diálogos não é coisa de principiante”.

Em linguagem coloquial, o professor dirige-se diretamente ao alter ego do autor e define a obra com perspicácia:

“(…) Você amou e fez o que quis. Exasperou seus amigos e exasperou o leitor, que, poucas páginas adiante, estará imerso na leitura e, vá lá, até um tanto embriagado com o texto. Tudo isso apenas porque você não se conformou com o desaparecimento de um livro, nem com o desfecho do mais conhecido romance de Umberto Eco. Você, a princípio, mero e recente personagem, impôs-se a personagens muito mais conhecidos, impôs-se a seu autor, impôs-se como autor”.

Já no texto de uma das abas do livro, o jornalista e cientista social Faustino da Rocha Rodrigues, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), ressalta que, ao recorrer a tantos personagens livrescos, o autor lhes deu voz, permitindo que eles comentassem e refletissem sobre as obras das quais fazem parte. E conclui: “Antes de qualquer coisa, temos em nossas mãos nada mais nada menos do que literatura. É como trabalhar a ficção dentro da ficção. Uma literatura da literatura”.

Com essa definição, com certeza, o leitor não terá mais nenhuma razão para deixar de conhecer esta obra, que, com certeza, veio para ficar nos anais.

V

Waldecy Tenório (1933), nascido na cidade de Palmares, em Pernambuco, estudou Humanidades no Seminário de Olinda, graduou-se em Letras Clássicas e fez doutoramento em Filosofia na USP.

Foi professor no Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUC, de São Paulo, e assessor do educador, pedagogo e filósofo Paulo Freire (1921-1997), na Secretaria de Educação do município de São Paulo (1989-1991), à época da gestão da prefeita Luiza Erundina.

É autor também de A Bailadora Andaluza – a explosão do sagrado na poesia de João Cabral (1996), Escritores, gatos e teologia (2015), ambos publicados pela Ateliê Editorial, Amor do Herege: resposta às Confissões de Santo Agostinho (Paulinas, 1986) e João Alexandre Barbosa: o leitor insone (Edusp, 2007), em co-autoria com Plínio Martins Filho, editor e outro grande leitor de livros. Tem ensaios e resenhas publicados em revistas do Brasil e de Portugal.

Pesquisador e membro do conselho científico da revista da Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia, foi pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Foi redator e editor de várias seções na redação de O Estado de S. Paulo e, mais tarde, editor-adjunto do suplemento Cultura deste jornal, além de colaborador da Abril Cultural e da revista Realidade e coordenador de projetos da Fundação Roberto Marinho.
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De pulchro et apto: O Manuscrito Perdido de Santo Agostinho – A tese que virou romance, de Waldecy Tenório. Curitiba, Artêra Editorial/Appris Editorial, 176 páginas, R$ 49,00, 2025. Site: www.editoraappris.com.br

 

Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: [email protected]

 

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