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Opiniões

25 DE JULHO DE 2016

Uma radiografia da elite senhorial

Por: Da Redação

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  I

        De onde veio a elite senhorial brasileira? De Portugal, claro. Mas não de Lisboa. Veio, isso sim, em grande parte, do Norte de Portugal e das ilhas açorianas. Na maioria, os fundadores das famílias que constituíram a aristocracia rural, da qual resultaram alguns influentes políticos que ainda hoje se destacam no cenário nacional, chegaram aqui com uma mão na frente e outra atrás, em busca da chamada “árvore das patacas”. À custa de muito esforço, obtiveram sesmarias, escravizaram indígenas e tornaram-se latifundiários, escravocratas e capitalistas, ou seja, “homens bons” no século XVIII. Quase todos seriam pessoas de escassas letras.

            Quem duvida que procure ler o Dicionário Histórico do Vale do Paraíba Fluminense, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras (IHGV) e pela Prefeitura Municipal de Vassouras, com o apoio da Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, organizado pelas historiadoras Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Neusa Fernandes e Roselene de Cássia Coelho Martins com a colaboração de mais 21 pesquisadores, entre os quais se destacam Antonio Henrique Cunha Bueno e Carlos Eduardo Barata, autores do Dicionário das famílias brasileiras (São Paulo, Editora Ibero-Americana, 1999).

            Quem tiver a sorte de colocar as mãos neste livro vai conhecer um trabalho pioneiro sobre seis municípios fluminenses – Vassouras, Barra do Piraí, Campos dos Goitacazes, Barra Mansa, Resende e Volta Redonda –, que recupera a história de 45 famílias tradicionais, além de reunir informações sobre instituições culturais, políticas, educacionais e religiosas. Constitui ainda importante conjunto patrimonial e histórico da época áurea do café que, no século XIX, marcou os destinos do Vale do Paraíba Fluminense.

            Uma importante família foi a Andrade, que teve início na região com a chegada em 1751 de Cristóvão Rodrigues de Andrade, natural do lugar de Nogueira da Costa na freguesia de São Pedro, bispado do Viseu, que fica no encaixe entre o Centro e o Norte de Portugal. Outra foi a Antunes Moreira, cujo patriarca no Brasil foi Manuel Antunes Aldeia, natural da Aldeia da Ponte, termo da Vila dos Alfaiates, na Guarda.

II

            Uma família que não se destacou por sua riqueza, mas que ficou bastante conhecida no Brasil foi aquela iniciada por João Augusto Soares Brandão (1844-1921), nascido no povoado de Lomba da Maia, na ilha de São Miguel, nos Açores, aliás, a mesma terra do avô materno deste resenhista, cujo pai era natural do lugar de Peias, freguesia (hoje vila) de Carvalhosa, no concelho de Paços de Ferreira, Norte de Portugal.

            Brandão adquiriu as primeiras letras no Brasil, tendo trabalhado como caixeiro em uma padaria e charuteiro no centro do Rio de Janeiro, antes de seguir a carreira artística, o que se deu depois de assistir a várias peças do grande ator João Caetano (1808-1863). Atuou em companhias mambembes que percorriam as cidades do interior do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Em 1883, passou a morar em Vassouras, apresentando-se no teatro local. Um de seus rebentos foi o célebre ator e comediante Brandão Filho (1910-1998).

            Uma família que se destacou em Vassouras foi a de Benjamin Benatar (1809-1859), que nada tinha de português. Era natural do Gibraltar, Marrocos. Chegou ao Brasil em 1829, instalando-se em Vassouras, em 1838, como dono de botequim, com jogo de bilhar, e venda de secos e molhados. Casou-se em 1841 no Rio de Janeiro com a paulista Brites Maria da Costa Gavião. Foi um dos comerciantes mais prósperos da cidade, mas o episódio que o marcou para sempre foi a opção no leito de morte de morrer como judeu. Por isso, embora fosse participante da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, foi-lhe negada sepultura no único cemitério da cidade.

            Curiosamente, a família de Vassouras mais conhecida também não era totalmente de origem portuguesa: Lacerda Werneck, da aristocracia rural cafeeira, do qual descendia Carlos Frederico Werneck Lacerda (1914-1977), jornalista, fundador do jornal Tribuna da Imprensa e da Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, deputado federal e governador do Estado da Guanabara (1960-1965), que teve importante papel na articulação do golpe civil-militar de 1964, até que, mais tarde, decidiu romper com a ditadura (1964-1985). Teve início esta família com Johan Werneck (c.1670-1722), que se declarava de nação alemã, embora haja uma corrente de historiadores que indica esta linhagem como de origem irlandesa.

            Ao contrário do seu filho Carlos, expoente do pensamento conservador, o tribuno e escritor Maurício de Lacerda (1888–1959) destacou-se como advogado defensor de operários anarquistas e comunistas. Era o ex-governador também neto paterno do magistrado Sebastião Gonçalves de Lacerda (1864-1925), ministro do Supremo Tribunal Federal (1912) e ministro da Viação e Obras Públicas no governo de Prudente de Morais (1894-1898). Sua mãe foi Olga Caminhoá Werneck (1892–1979). Embora nascido no Rio de Janeiro, Carlos Lacerda foi registrado em cartório de Vassouras e sempre esteve muito ligado à cidade. Como o pai e os tios Paulo Lacerda e Fernando Paiva de Lacerda, foi comunista até 1939, período em que combateu a ditadura de Getúlio Vargas. Naquele ano, rompeu com o movimento, depois de concluir que aquela doutrina levaria “a uma ditadura pior que as outras, porque muito mais organizada”.

III

            Uma vassourense ilustre foi Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), mulher avançada para o seu tempo, que viveu sua infância e adolescência numa bela residência senhorial conhecida como a Casa da Hera. Recebeu educação esmerada, apreciava literatura, lia Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e contos de Edgar Allan Poe (1809-1849).

            Viveu um romance de 14 anos com Joaquim Nabuco (1849-1910), advogado, herdeiro de latifundiário pernambucano e defensor da liberdade para os escravos, grande tribuno e jornalista combativo, que despertava a ira dos conservadores que o consideravam um “arrogante mulato nordestino e perigoso abolicionista”, segundo a historiadora Neusa Fernandes. Aliás, quem quiser conhecer a fundo a história desse romance deve procurar ler o livro Eufrásia e Nabuco (Rio de Janeiro, Mauad, 2012), da historiadora Neusa Fernandes, que teve acesso à longa correspondência trocada entre os amantes.

            O Dicionário também inclui verbetes dedicados ao chefe quilombola Manoel Congo, que teve seu memorial inaugurado em 1996. Manoel Congo, com sua companheira Mariana Crioula, liderou uma rebelião que envolveu mais de 300 escravos em novembro de 1838. Sufocada a rebelião, Manuel Congo foi enforcado em 1839. O memorial, um modesto monumento, hoje pode ser visto no antigo Largo da Forca, localizado no bairro da Pedreira, a 100 metros do centro histórico de Vassouras. Sobre o quilombo de Manoel Congo, Carlos Lacerda publicou em 1935 um livreto assinado sob o pseudônimo Marcos.

            Epifânio Moçambique, outro líder da revolta de escravos ocorrida em 1838, é também recordado em verbete. Coube ao coronel-chefe da Legião da Guarda Nacional, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, também senhor de escravos e proprietário de fazenda de café, organizar a grande força policial que sufocou a revolta.

IV

        Neusa Fernandes é historiadora, museóloga e pós-doutora em História e Literatura. Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da UniRio, é sócia efetiva do IHGV e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além de autora de dez livros de História e de Museologia, entre os quais A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII (Rio de Janeiro, Mauad, 3ª ed., 2014), outra obra imperdível para historiadores e estudantes de História.

            Irenilda Cavalcanti é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora adjunta e coordenadora dos cursos de mestrado e graduação em História da Universidade Severino Sombra (USS), de Vassouras. Sócia do IHGV, é autora de capítulo do livro História Urbana: memória, cultura e sociedade, publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

            Roselene de Cássia Coelho Martins é graduada em História e pós-graduada em História do Brasil pela USS, com mestrado em História Social pela mesma instituição. Sócia-fundadora do IHGV, é consultora e pesquisadora em História na área de Arqueologia (em sítios urbanos e rurais) e Arquitetura de patrimônios tombados.    

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Dicionário Histórico do Vale do Paraíba Fluminense, de Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Neusa Fernandes e Roselene de Cássia Coelho Martins, com apresentação de Carlos Wehrs, membro emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Vassouras-RJ: Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras/Prefeitura Municipal de Vassouras/Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 344 págs., 2016.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros. E-mail: [email protected]

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