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Opiniões

29 DE JULHO DE 2011

Doente, eu?

Por: Da Redação

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Caminho quase um quilômetro entre um dos empregos (jornalistas colecionam patrões) e minha casa. No trajeto, são 12 salões de beleza ou clínicas de estética ou outros nomes, em vários idiomas, que reforçam exatamente o produto a ser vendido: aparência.


Perto da residência de uma amiga, há quatro estabelecimentos numa quadra. A concorrência é saudável. Todos vão muito bem, obrigado, tanto que investiram em reformas das instalações este ano. No prédio de meus pais, há um ponto comercial que vingou depois de 15 anos. Qual o ramo? Redundante dizer. Ao menos afastou a lenda de que havia cabeça de burro enterrada por ali. Na rua ao lado, mais dois salões de beleza, sempre cheios.


O milagre da multiplicação de cabeleireiros (o nome original) indica desenvolvimento econômico, mas realça comportamentos e valores culturais, marcas de um modo de vida cada vez mais dependente da aparência em detrimentos de aspectos essenciais, internos aos seres humanos.


A progressão geométrica, em Santos, também diz respeito às farmácias ou drogarias ou nomes parecidos que atendem a outro sintoma do homem moderno: a dependência química, a escravidão da saúde fast-food.


Na década passada, a cidade viveu um debate em torno da lei que estabelecia a distância mínima de 200 metros entre duas farmácias. O assunto foi remediado por injeções de interesses e hoje é possível observar farmácias que convivem na mesma calçada ou se transformaram em mini-supermercados, onde se come, bebe e melhora a aparência. As duas áreas se abraçam para tratar várias patologias, físicas ou sociais, para que os “pacientes-clientes” pareçam saudáveis.


A somatória singela destes dois segmentos marca em brasa o estilo de vida atual. Apostamos em soluções velozes para problemas de longa duração. Fomos soterrados pela preocupação com o outro, com a aprovação social e estética dentro de critérios e moldes jamais determinados por quem os segue.


Os homens (e as mulheres) de hoje mal consegue conviver com a própria imagem no espelho. Fogem, em desespero, de conversas internas, de reflexões e avaliações sobre atos e a própria vida. É mais fácil buscar, em farmácias e salões de beleza, respostas imediatas para os males que insistem em reaparecer para o retoque nas pontas, na próxima semana.


As respostas podem se materializar na pílula azul da metamorfose sexual, nas pílulas da felicidade que encenam matar a melancolia ou na nova técnica de escova, que ressuscitará – atrás da cortina de fumaça – aquela mulher ideal que jamais poderia ter desaparecido pela crueldade do tempo.


Ninguém é contra a valorização de si mesmo. O exagero nos conduz a cegueira de que torrar horas atrás de cremes e outras substâncias representa a fronteira da mudança. O exagero que nos leva a crer, de forma fanática, nas farmácias como locais de lazer, ponto de passeio familiar, com um comprimido mágico para cada pedra no caminho. 


Vivemos numa sociedade doente, que se perpetua pelo individualismo e pela intolerância. Muitos se tornaram escravos voluntários do padrão. Lutam para serem diferentes e melhores, enquanto chafurdam na lama dos iguais. Neste sentido, quem ruma por uma estrada de curvas particulares paga o preço da incompreensão. Quem tenta rejeitar a robotização padece de alguma enfermidade. É a sociedade que idolatra criar patologias para quem se recusa a tomar a pílula da moda ou ter o cabelo da celebridade do mês.


Lembro-me da reação de um amigo que, ao ver mais uma farmácia a ser inaugurada, comentou ingenuamente:


— Mais uma? Deve ter muita gente doente!

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