Fatos do passado precisam ser relembrados para se evitar erros no presente – e para o futuro.
Afinal, há mais de 100 anos, o jornalista santista, advogado e poeta, Vicente de Carvalho alertou o então presidente Epitácio Pessoa sobre os riscos da ocupação das praias de Santos pelo setor imobiliário.
Isso em 1921!
Portanto, o tema remete à discussão sobre a PEC das Praias, hoje no Senado, alvo de intensas discussões que ocorreram nas redes sociais nas últimas semanas.
Na pauta, o fim do laudêmio para todos os imóveis de marinha, surgido no período do Império em 1831.
Na ocasião, a lei federal já visava garantir a preservação das praias – especialmente dos manguezais – com faixa de 33 metros por ser área da União.
No entanto, brechas na PEC (acesse o conteúdo aqui) podem levar a possibilidade de privatização das praias, algo negado pelos que defendem a proposta.

Dessa forma, os jardins de Santos só foram possíveis graças ao trabalho e defesa de Vicente de Carvalho. Foto: Nando Santos
Privatização das praias
Dessa maneira, a lei nada fala sobre privatização das praias, mas pelo conteúdo do texto há risco disso ocorrer, segundo os contrários à proposta.
Afinal, o foco seria a transferência de imóveis de marinha – independente do tamanho da área e do valor do imóvel.
Aliás, seja de moradores de áreas carentes, como na Zona Noroeste, até quem vive em frente às praias do litoral brasileiro, cujos imóveis valem milhões em alguns casos.
No entanto, sem limitação de critérios sociais e econômicos, além do tamanho das áreas a serem beneficiadas, usa-se o discurso de ajuda à população mais carente.
No entanto, na prática, beneficiaria grandes conglomerados e pessoas de elevado padrão econômico – como criticam os contrários à proposta.
O próprio Serviço do Patrimônio da União (SPU) esclarece que não há necessidade de uma PEC para garantir a regularização fundiária dos imóveis de marinha.
Além disso, o projeto prevê que a União acerte toda a situação em dois anos.
Aliás, isso pode levar a uma série de pedidos judiciais por parte dos proprietários caso não haja cumprimento da legislação.
Não bastasse, há transferência para estados e municípios, que passarão a deter o poder sobre as concessões para futuras obras e expansões em frente às praias, por exemplo.
Brechas
Portanto, abre-se ainda a brecha para que a União tenha que indenizar futuramente os proprietários, caso necessite para obras e expansões.
Ou seja, se hoje a União é credora passará a ser devedora.
A proposta teve larga aprovação na Câmara Federal em fevereiro de 2022,.
Aliás, na ocasião, três dos deputados da Baixada Santista foram favoráveis à proposta. (leia mais aqui)
Assim, vale a pena conferir a história deste santista, cujas ideias revolucionárias merecem o resgate diante da atual discussão.
Além disso, serviram de exemplo para evitar que Santos tivesse um paredão de prédios onde hoje estão os jardins.
Dessa forma, se tornaram os maiores do mundo, conforme o Guinness, ao longo dos 5.335 metros de comprimento e 50 metros de largura.

Portanto, este foi o modelo da carta enviada por Vicente de Carvalho ao presidente Epitácio Pessoa. Foto: Nando Santos
Vicente de Carvalho
Aliás, quem quiser conhecer um pouco desta história, basta acompanhar a exposição em homenagem a Vicente de Carvalho.
Presente na Casa das Culturas, recém-inaugurada pela Prefeitura, lembrando o centenário de morte de Vicente de Carvalho, o Poeta do Mar.
Por sua vez, a estátua está na praia do Boqueirão.
Justamente no jardim que surgiu graças a sua atitude de evitar a sanha imobiliária da ocasião.
Memória Santista
Assim, confira toda a história sobre este episódio no site Memória Santista, de autoria do jornalista Sergio Willians.
“Esta semana, mais precisamente no dia 5 de abril, Vicente Augusto de Carvalho foi lembrado e homenageado pelos 150 anos de seu nascimento.
Advogado, jornalista, poeta, o ilustre santista, nascido em 1866, era reconhecido por sua excepcional capacidade oratória, letras finas e conduta reta, inteiramente coerente com seus princípios e valores.
Vicente de Carvalho foi um aguerrido abolicionista e republicano.
Chegou a ingressar na carreira política, elegendo-se deputado estadual em 1891 e, no ano seguinte, ocupar o cargo de secretario de interior no governo paulista de José Alves de Cerqueira César.
Porém, logo cansou-se da burocracia e dos meandros do universo político e decidiu direcionar sua vida ao jornalismo, à agricultura (até 1901) e aos seus poemas, que o elevaram ao patamar de um dos mais importantes escritores do país.
Das dezenas de obras literárias que produziu, a que especialmente marcou sua carreira, Poemas e Canções, foi lançada um ano antes de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira nº 29, no lugar do maranhense Artur Azevedo, no dia 1º de maio de 1909.
Vicente de Carvalho foi casado com Ermelinda Ferreira de Mesquita, a Biloca, com quem teve quinze filhos.
Luta contra a especulação imobilária
De todos os seus feitos, que não foram poucos, o que mais impactou os santistas foi sua luta pela preservação da faixa de orla praiana, alvo da especulação imobiliária no início da década de 1920.
Na época, grandes palacetes começavam a modificar a paisagem local, a maioria construída a mando de influentes comerciantes de café.
Os carros também já tomavam conta das velhas ruas e avenidas de areia batida dos bairros da praia e, assim, o ambiente se transformava. Atraídos pelo potencial econômico, um grupo de empresários iniciou uma forte articulação política para “tomar” a faixa de areia, com planos até de tornar a praia “particular”.
Tal movimento alertou parte considerável da sociedade santista, em especial Vicente de Carvalho, figura de peso na imprensa paulista e ardoroso defensor de sua terra natal.

Exposição sobre Vicente de Carvalho ocorre na Casa das Culturas. Foto: Nando Santos
Carta aberta
Assim, em 21 de agosto de 1921, o ilustre santista resolveu escrever uma carta aberta dirigida ao presidente da República, Epitácio Pessoa, que estava de passagem pela cidade, solicitando a transferência dos terrenos da orla (onde estão hoje os jardins), pertencentes à União, para o município, para que este pudesse promover um projeto urbanístico que salvaguardasse a orla marítima, onde já existiam trechos “ajardinados”, como descreveu em sua mensagem.
Vicente de Carvalho foi enfático, duro em alguns momentos, prevendo que, caso os empresários tivessem êxito em sua empreitada, “o interesse particular, e é ele que se empenha nessa obra sacrílega de destruição abre lentamente, como micróbio ativo e tenaz, caminhos subterrâneos por onde se infiltra mesmo em organismos resistentes.
Paira sobre Santos a ameaça de ser privada da melhor das belezas de sua terra, da linda praia da Barra, joia doada pela natureza, e que a nossa cidade vem, de geração em geração, gozando largamente e conservando com carinho”.
A carta surtiu o efeito desejado e o presidente Epitácio Pessoa providenciou, cinco meses depois, em 20 de janeiro de 1922, a concessão, enviado pelo ministro da Fazenda, ao coronel Joaquim Montenegro, prefeito da cidade na época, de aforamento gratuito da Praia da Barra à Câmara Municipal de Santos.
O documento indicava que “não serão permitidas edificações no local, nem transpassa-lo ou subaforá-lo”.
Com a determinação, a praia estava salva e os jardins logo surgiriam, para o orgulho dos santistas, que devem a Vicente de Carvalho esta vitória pela preservação da orla santista.
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