Dizem que o melhor tempo da cidade é sempre o que já passou.
Dizem com um jeito de confidência, como quem retorna mentalmente à esquina onde a infância parecia durar para sempre.
A memória, essa velha arquiteta do afeto, sabe como maquiar.
Ela corta um pedaço, retoca outro, muda a luz do cenário. Guarda o som da praça cheia, mas não mostra o muro descascado nem a calçada que tropeçava.
Guarda o cheiro de pão quente da padaria, mas esconde a fumaça do ônibus que passava cuspindo fuligem.
A gente folheia o passado como quem abre um álbum gasto de tantas mãos. E ali, por instantes, acredita que o antes era melhor apenas porque é conhecido.
É nosso de um jeito que o presente ainda não aprendeu a ser.
Em Santos, no Cais da Marinha ou no Mercado Municipal, já vi esse mesmo olhar que vi no Mercado de Lisboa ou numa esquina velha de Roma: o olhar de quem tenta segurar um tempo que escorreu.
Mas a cidade é um palco que nunca fecha a cortina. Algumas cenas ficam, outras desaparecem sem nem dar tchau.
O mercado que já foi um corpo vivo, cheio de vozes, hoje respira poeira e silêncio, esperando atores que não voltam.
A rua que sabia nossos passos agora corre mais depressa do que a gente, cheia de gente que não se vê.
Não muda só o prédio — muda a vontade de habitar.
O presente anda com pressa. O relógio urbano empurra a gente, e o olhar quase nunca se demora num detalhe.
Viramos clientes da cidade: pagamos por seus serviços, postamos suas imagens, consumimos o que ela oferece.
Mas esquecemos que também somos autores da história que ela conta. Uma cidade apenas consumida e não vivida perde espessura, perde cheiro, perde até nome.
O espaço público, que já foi quintal coletivo, vai virando corredor. Praça que era sala de estar do bairro agora é atalho. Banco de praça que era encontro agora é obstáculo.
Rua que era prolongamento da casa virou só o trecho entre duas portas trancadas. E quando o morador deixa de ver o próprio espaço público, ele começa a morrer.
Essa morte não é espetáculo. É lenta. Primeiro some a banca de jornal, depois as crianças do fim da tarde.
A música da feira dá lugar ao ronco dos motores. E a gente nem percebe que aquela calçada já foi palco de histórias sopradas no ouvido.
Não é o tempo que passou. É o presente que a gente deixa passar.
Isso não é exclusividade daqui: já vi em Barcelona bairros que eram redutos de vizinhança virarem vitrines.
Em Nova York, esquinas com histórias cedendo lugar a franquias iguais em qualquer parte do mundo.
O enredo é sempre parecido: quando a vida local enfraquece, o “nós” se dissolve, sobra só o “eu”.
O que chamamos de “melhor tempo” pode morar aqui, agora. Mas precisa de outro ritmo: menos vitrine, mais convivência.
Reocupar praças não só com festa marcada, mas com a vida banal dos dias.
Olhar para áreas esquecidas e enxergar oportunidade, não ruína. Aprender a ver o outro como parte do cenário que nos pertence.
Não é preciso esperar grande obra. Já vi uma horta comunitária num terreno baldio transformar o humor de uma rua.
Já vi vizinhos pintarem, sozinhos, o coreto que ninguém olhava. Já vi mutirão limpando canal em dia de sol.
Pequenos gestos, mas que devolvem pertencimento — e pertencimento é cimento de cidade.
O passado idealizado serve de mapa. Não para voltar atrás, mas para roubar dele as receitas de convivência.
Perguntar: o que fazia aquela rua ser viva? O que fazia a feira ter cheiro de conversa? O que fazia o porto contar histórias?
É aí que se descobre que a vitalidade não é do calendário, é das relações que costuramos.
O perigo de viver de saudade é virar estátua. Parar antes do tempo. Achar que o que vem nunca vai ser tão bom quanto o que foi.
Para escapar disso, é preciso criar memórias agora, enquanto o corpo ainda cabe no presente.
Se quisermos que, no futuro, a cidade seja orgulho e não só lembrança, precisamos trabalhar por ela hoje.
Mais do que reclamar das mudanças, é preciso entrar na obra. Aceitar que o presente tem arestas, mas é moldável.
E que o molde, por mais que doa admitir, está na nossa mão.
Talvez ainda digam que “o melhor tempo da cidade é sempre o passado”.
Mas se a gente fizer o que nos cabe, essa frase vai ter outro peso: o de quem sabe que cada tempo, vivido com atenção e partilha, pode ser o melhor. Inclusive este.
Alessandro Lopes é arquiteto e urbanista, mestre em Direito Ambiental e professor universitário. Pesquisador em Cidades Criativas e Sustentáveis, atua como assessor técnico em políticas de zeladoria urbana. É também comentarista em rádio e TV e palestrante nas áreas de urbanismo e inovação
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