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17 DE JULHO DE 2009

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Segredo de infância

“Para tudo há um tempo determinado”- Eclesiastes 3:1. O versículo bíblico traduz bem a relação do homem com a história que cada um constrói durante a vida. Há tempo de brincar, estudar e  crescer.  Cada fase da vida vem acompanhada de acontecimentos que marcam a chegada de uma nova etapa, trazendo experiências e exigindo novos […]

Por: Da Redação

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“Para tudo há um tempo determinado”- Eclesiastes 3:1. O versículo bíblico traduz bem a relação do homem com a história que cada um constrói durante a vida. Há tempo de brincar, estudar e  crescer.  Cada fase da vida vem acompanhada de acontecimentos que marcam a chegada de uma nova etapa, trazendo experiências e exigindo novos posicionamentos.

Algumas crianças e adolescentes têm esse percurso interrompido e perdem a oportunidade de desfrutar situações  características de cada idade. O ambiente corriqueiro, que cerca o cotidiano dos menores e até mesmo o próprio lar viram cenário de um crime perverso e cada vez mais comum: o abuso sexual.

J. de 3 anos poderia ter uma infância como qualquer outra criança. Apesar da pouca idade, seu olhar esconde a marca de uma experiência amarga que, provavelmente, levará para o resto da vida. Ela foi abusada sexualmente pelo padastro.

O caso foi descoberto porque J. chegou à escola, localizada na Zona Leste de Santos, com sangramentos que confirmavam os vestígios de agressão, atestado por uma pediatra. Pior: a menor foi encaminhada para uma entidade, pois a mãe se colocou favorável ao companheiro, suposto agressor.

R., de 12 anos, também partilha uma história triste e marcante. Desde os 9 anos, foi vítima de seu irmão, 10 anos mais velho. Hoje, quatro anos depois, R. caminha com as marcas de uma violência que será levada por toda sua trajetória.

O número de casos de abuso sexual registrados em Santos no ano passado foi de 238 – uma média de cinco por semana. As vítimas são meninas (61%) e meninos (39%). 1/3 dos casos envolveram menores de seis anos.

O triste quadro está se tornando ainda pior. Segundo a Secretaria de Ação Social da Cidade, apenas no primeiro semestre deste ano foram  registrados 151 casos – o equivalente a 63% de todos os registros de 2008. As estatísticas, porém, revelam apenas as situações que, de alguma forma, chegaram ao conhecimento do Poder Público. Portanto, é provável que o número de casos reais seja ainda maior.



Sociedade
Os relatos de abuso sexual estão inseridos em todas as classes sociais.  Por  estarem próximas dos serviços públicos, os casos que acontecem em camadas menos favorecidas da sociedade são descobertos com mais facilidade. “Eles são mais fáceis de identificar porque são famílias que utilizam serviços municipais, como educação e saúde pública, com mais regularidade”, diz o promotor de Justiça da Infância e da Juventude de Santos, Carlos Alberto Carmello Júnior.

Segundo o promotor, os serviços públicos têm dever legal de informar autoridades sobre suspeita de abusos ou maus tratos para facilitar a identificação dos casos. 

Carmello afirma que os contatos da rede pública com crianças e adolescentes de camadas mais favorecidas é esporádico. Normalmente, são jovens que utilizam escolas e serviços particulares, por isso os casos de abuso são menos visíveis.

Pedofilia
Por trás de uma pessoa que abusa sexualmente de um menor, estará sempre um pedófilo. No entanto, não é simples identificar os agressores e assimilar  o desejo que eles desenvolvem por esse crime cruel.

Classificados, em alguns casos, como sociopatas, eles partilham de características semelhantes. Sentir-se o dono da criança ou adolescente é a principal delas: o pedófilo sente plena satisfação em controlar um indivíduo.

“Ele gosta de submeter o objeto sexual dele, por isso  escolhe a criança, que não tem defesa. O prazer está na submissão”, diz a psicóloga Maria Paula Farinha Carvalhaes. Segundo a profissional, o pedófilo desenvolve diversas atividades que agradam crianças e adolescentes, porque gosta de tê-las próximas.

“Há de se suspeitar, por exemplo, de uma pessoa que mantém uma série de atrativos para crianças dentro de casa e, constantemente, sente a necessidade de estar perto delas”, afirma.

Os casos recentes e divulgados sobre pedofilia têm como autor dos crimes pessoas do sexo masculino e, de acordo com Maria Paula, eles realmente são a maioria. Quando o agressor é uma mulher, ela apresenta distúrbios psiquiátricos e, às vezes, problemas sexuais.  “É um mito dizer que a maioria dos pedófilos já foi vítima de violência também”, garante.

A agressão
Os casos de abuso sexual e pedofilia surpreendem e revelam que a grande maioria acontece dentro do núcleo familiar.  “Normalmente são pessoas próximas, que possuem fácil acesso às crianças”, diz a psicóloga.
Ambientes que reúnam grande número de crianças, como áreas de lazer de condomínios ou ainda as ruas, são situações que também podem dar espaço a esses acontecimentos. “Às vezes, eles são atraídos para lojas ou vizinhos”, comenta.  “Temos relatos de adolescentes que foram abordadas por pedófilos até no cinema”, relata a psicóloga.  Ela comenta que alguns agressores frequentam ambientes onde o jovem estará sem a presença dos pais para facilitar a abordagem.

Marcas
Justamente por ser agredida  pelas pessoas próximas e conhecidas, o abuso sexual traz sérias consequências psicológicas à criança. “São conteúdos que se chocam porque ela não sabe o motivo pela qual está sendo agredida por uma pessoa que ama e confia. São coisas esquizofrenantes para uma criança”, afirma Maria Paula.  A psicóloga relata que grande parte das tentativas de suicídio infantil é por conta do abuso sexual.

Além se ser traumatizante para a criança, o incesto (estupro por parte do pai ou mãe) pode causar  sérios problemas psiquiátricos. “Ela pode desenvolver um bloqueio afetivo e pessoal e ter o desenvolvimento prejudicado. Às vezes, querem disfarçar o corpo ou desenvolvem distúrbios alimentares”, analisa.

A confusão gerada na mente da criança resulta na auto-crítica da própria vítima que acha que, de alguma forma, pode ter merecido a agressão. Há uma confusão de sentimentos quando o jovem é assediado ou tocado por alguém que gosta. “A criança é  autoreferenciada. Se acontece algo de ruim, ela acha que pode ter feito algo errado”, explica Maria Paula.  “Como não houve reação, ela tem medo de contar e não acreditarem. Por isso, esconde o fato”, afirma. 

Sinais
O abuso sexual costuma não deixar vestígios aparentes, por isso, o amparo e atenção da família é a principal ferramenta para avaliar as mudanças no comportamento da vítima.

Independentemente da idade, é possível saber se o jovem enfrentou situações que incomodaram.  “A criança pode apresentar sinais de erotização, se tocar exageradamente, perguntar e se interessar por conteúdos sexuais”, exemplifica.

Segundo Maria Paula, a criança pode, também, ficar arredia ao toque dos pais, se recusar a sair de casa e apresentar sinais depressivos como consequência do abuso. “É importante avaliar os medos excessivos de frequentar alguns lugares ou encontrar certas pessoas”, diz.

Acompanhar de perto os filhos em algumas tarefas cotidianas pode ser determinante como por exemplo, observar se há queixas e incômodo na hora de ir ao banheiro para fazer as necessidade fisiológicas. “Caso haja suspeita de abuso, os pais precisam agir com muita naturalidade para que a criança não se assuste”, indica a psicóloga.

“É importante não induzir às respostas prontas para que ela não fantasie ao redor da situação,” aponta. “É necessário apenas afirmar que tudo que ela falar será acreditado e entendido”, acrescenta.

Sonhos ou pesadelos frequentes também indicam que o jovem passou por situações incômodas e ter sensibilidade é fundamental para identificar essas situações. “O trauma não aparece na hora. Ele vai ressurgir em outros momentos e o jovem apresenta uma revivência primária da cena e volta àquele momento de uma forma aterradora”, diz.

Estrutura familiar

Cultivar um ambiente familiar saudável, onde os pais estejam vinculados aos filhos são ferramentas essenciais para evitar ou identificar situações de abuso sexual. Abordar as crianças e adolescentes preventivamente é fundamental para que haja um esclarecimento e preparo para enfrentar situações inusitadas. “Sexualidade é um conteúdo de educação familiar e não escolar. Os pais devem cuidar e formar seus filhos”, afirma a psicóloga.

A partir dos quatro anos de idade, segundo Maria Paula, a criança tem condições de se expressar melhor e também entender os conteúdos. Ela já pode se envolver em jogos sexuais porque é nessa época que descobre a diferença dos sexos.

“Nessa idade já é possível abordá-los com naturalidade e explicar que brincadeiras entre crianças da mesma idade existem, mas que, toda vez que alguém mais velho quiser tocá-lo (a) ou abordar algum assunto sobre sexo não será uma situação normal”, explica.

Maria Paula afirma que os pais devem prevenir os filhos sobre situações coletivas como, banheiros de escola, shoppings e programas fora de casa, como viagens e estadias em casas de amigos.  “Os pais devem indicar que, se a criança ficar constrangida deve gritar ou sair do local”, sugere.

Atitudes habituais, que fazem parte da rotina diária do lar, precisam sugerir que a privacidade da criança deve ser preservada. “Não temos o hábito, por exemplo, de fechar uma janela quando a criança está se trocando. Algumas vezes, fazemos isso até mesmo na frente de outras pessoas”, diz.

Segundo a psicóloga, a criança precisa entender que não é normal ficar sem roupa na presença de pessoas que não tenha intimidade. “Já tive relatos de crianças que viram vizinhos olhando e sentiram-se constrangidas”, acrescenta.

A falta de estrutura familiar colabora para que ela esteja mais vulnerável a determinadas situações. Ficar abandonado aos próprios recursos após uma família desfeita pode fazer com que as situações sejam facilitadas. “Há casos onde as crianças ficam sozinhas por um longo período de tempo como, por exemplo, quando a mãe precisa trabalhar fora”, diz. “Acredito que as crianças estão mais sozinhas e as famílias mais desorganizadas. Por isso, houve um aumento de casos”, finaliza.

Quando uma criança ou adolescente é vítima de abuso é fundamental que ele receba acompanhamento especializado. “ É importante um trabalho de apoio para que elas não se sintam culpadas pelo que aconteceu”, diz a psicóloga. “Por isso é importante que elas tenham acompanhamento psicológico e psiquiátrico”, comenta.

Centro atende vítimas de abusos


Com o objetivo de prestar atendimento gratuito às crianças vítimas de abuso sexual, o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) disponibiliza uma equipe multidiciplinar para realizar esse acompanhamento. O serviço pode ser utilizado por qualquer munícipe, seja  usuário do sistema público ou privado de saúde. “Contamos com advogados, psicólogos, assistentes sociais, dentre outros profissionais, que dão total assistência à família e à vitima”, diz o coordenador da Ação Social, Carlos Mota.

Segundo Mota o conselho tutelar é o responsável pelo encaminhamento de 85% dos casos, seguidos das ordens judiciais e também do Ministério Público. “O objetivo do Creas é buscar a reestruturação da família como um todo. Por isso, o atendimento para a vítima e também para a família (salvos os casos em que o próprio familiar é o agressor).

O coordenador orienta que, no caso de suspeita de abuso sexual, o munícipe acione o Conselho Tutelar, que será o responsável em apurar o caso. “O denunciante não precisa se identificar”, garante. O Creas atende pelo telefone 3221-8525.

Justiça

De acordo com o promotor da infância a da juventude Carlos Alberto Carmello Júnior, quando o crime de abuso é caracterizado, o agressor deve ser preso. “É um crime de extrema gravidade”, diz.

Nas situações em que o fato ainda está em fase de apuração, o Ministério Público pode pedir um afastamento temporário do agressor do lar onde a criança vive.

Ele comenta que, como na maioria dos casos não há flagrante, a ocorrência é verificada por meio dos vestígios físicos ou da palavra da criança. “Cada vez mais a Justiça tem que estar aberta a creditar a criança”, afirma.  “Evidente que temos preconceito com ela,  mas existem critérios psicológicos para aferir se o testemunho é verdadeiro ou não”, complementa.

Profissionais capacitados, que possam avaliar e interrogar crianças com sensibilidade, são fundamentais nesse processo, pois o ambiente onde a criança precisa prestar depoimento não é acolhedor. “A criança fica intimidade quando é chamada para dar depoimento na polícia ou em juízo. O simples fato de você saber o que aconteceu com ela já é traumatizante”, afirma.

O promotor faz referência ao sistema adotado pelo Rio Grande do Sul que, com o objetivo de amenizar esse trauma, trata os casos de abuso sexual de uma forma diferenciada. “A criança presta depoimento apenas uma vez. Ela é levada a uma sala com brinquedos (referência a um ambiente onde ela está acostumada a lidar) e é entrevistada por uma psicóloga capacitada que vai saber a maneira como perguntar e também a melhor hora”, analisa.

Ele explica que a profissional fica com um ponto de som no ouvido onde escuta os pedidos de pergunta do juiz. O depoimento é gravado e a criança não precisa se expor a depoimentos repetitivos.  “É uma maneira de preservarmos o crescimento do jovem e evitar que ele seja revitimizado por um trauma”, finaliza.

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