Entre os muitos problemas que atravancam o desenvolvimento do Brasil, poucos são tão fundamentais, e ao mesmo tempo tão negligenciados, quanto o saneamento básico.
Em pleno ano de 2025, 16,9% da população brasileira ainda não tem acesso à água potável e quase metade (44,8%) vive sem coleta de esgoto.
Os dados, extraídos do recém-lançado Ranking do Saneamento 2025, elaborado pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados, revelam uma realidade que deveria causar indignação coletiva, mas que ainda segue longe das prioridades governamentais.
Os impactos dessa negligência ultrapassam o campo da infraestrutura.
Falta de água tratada e de esgotamento sanitário adequado traduz-se em doenças evitáveis, internações hospitalares, evasão escolar, queda de produtividade no trabalho e desvalorização imobiliária.
Em última instância, compromete o próprio conceito de cidadania, perpetuando desigualdades históricas e inviabilizando o pleno exercício de direitos básicos.
É nesse contexto que se completaram, no mês de julho, cinco anos da aprovação do novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020), que estabeleceu a ambiciosa meta de universalizar o acesso à água potável e ao esgoto tratado até 31 de dezembro de 2033.
A lei promoveu uma reestruturação profunda do setor, abrindo espaço para a entrada de empresas privadas mediante processos licitatórios e estabelecendo metas obrigatórias de desempenho.
Desde então, o número de municípios com serviços operados por atores do mercado cresceu de forma exponencial, passando de 291, em 2019, para 1.793 em 2025, segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto.
Contudo, os avanços, embora reais em alguns contextos, ainda são insuficientes para garantir o cumprimento das metas estabelecidas.
De acordo com especialistas, mantido o ritmo atual de investimento, o Brasil só alcançará a universalização do saneamento em 2070, um atraso de quase quatro décadas.
Os gargalos são numerosos e complexos –a começar pela assimetria regional.
Enquanto municípios como Campinas, Jundiaí e Maringá já atendem ou estão próximos de atender toda a sua população com os serviços, capitais da Região Norte, como Porto Velho, Macapá e Rio Branco, apresentam níveis de cobertura de água abaixo dos 55%, revelando uma geografia da exclusão.
Quanto ao tratamento de esgoto, os obstáculos são ainda maiores. Somente cinco capitais apresentam ao menos 80% de esgoto tratado: Curitiba, Brasília, Boa Vista, Rio de Janeiro e Salvador.
De outro lado, em quatro capitais, esse índice é de menos de 20% (Porto Velho, Macapá, São Luís e Teresina).
Outro desafio estrutural reside na regionalização da prestação dos serviços, prevista no próprio Marco Legal.
Sua lógica é límpida: ao agrupar municípios em blocos, é possível garantir viabilidade econômica para localidades menores e menos atrativas ao setor privado.
Na prática, porém, a regionalização avança de forma tímida, enfrentando entraves políticos, disputas federativas e ausência de uma governança articulada entre entes locais e estaduais.
O cenário se agrava com a fragilidade das agências reguladoras.
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), incumbida de editar normas de referência e coordenar a regulação do setor, enfrenta limitações institucionais, influências políticas e orçamentárias que comprometem sua capacidade técnica de abarcar suas múltiplas atribuições.
Em muitas localidades, a regulação é feita por órgãos com baixa autonomia e capacidade limitada de fiscalização, o que favorece a ineficiência e reduz o poder de indução de boas práticas.
Não menos relevante é a questão do financiamento. Estudos indicam que, para atingir as metas do Marco Legal até 2033, o Brasil precisaria investir cerca de R$ 45 bilhões por ano –aproximadamente o dobro do volume atualmente destinado ao setor. Sem um esforço articulado entre União, estados, municípios e iniciativa privada, essa cifra seguirá sendo uma miragem.
A realidade é que, em 2025, o Brasil despeja todos os dias quase 5.500 piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento em seus rios, lagos e solos.
Apesar dos entraves, os exemplos bem-sucedidos indicam que o caminho é viável, desde que haja planejamento, investimento, governança, regulação eficiente e, sobretudo, vontade política.
O desafio está em transformar as exceções em regra, criando um ambiente normativo e institucional que promova eficiência, ampliação do acesso e justiça social.
É impossível falar em saúde, educação, habitação ou mobilidade com esgoto correndo a céu aberto.
O tempo da omissão já se esgotou. O Brasil precisa superar a invisibilidade do saneamento e reconhecê-lo, de uma vez por todas, como prioridade nacional.
O que está em jogo não é apenas o cumprimento de metas legais, mas o futuro de um país que só poderá ser verdadeiramente justo e desenvolvido quando garantir, a todos os seus cidadãos, o direito básico de viver com dignidade.
Dimas Ramalho é conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
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