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Opiniões

14 DE JUNHO DE 2010

A nova literatura angolana

Por: Da Redação

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                                                           I


            Il giorno in cui Paperino si è fatto per la prima volta Paperina e altri racconti: 12 storie quasi post-moderne (O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida e outros contos: 12 histórias quase pós-modernas), do angolano João Melo (1955), é o quarto volume da coleção Letteratura Luso-Afro-Brasiliana que a Morlacchi Editore, de Perúgia, Itália, vem publicando sob a direção do professor Brunello De Cusatis, responsável pelas Cátedras de Literaturas Portuguesa e Brasileira e Língua Portuguesa e Brasileira da Universidade de Perúgia, com o apoio do Instituto Camões e da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, de Portugal, em edição bilíngüe italiano-português.


            O objetivo da coleção, segundo De Cusatis, é dar a conhecer ao público italiano a obra poética e narrativa lusófona, com atenção particular à última geração que é pouco ou nada conhecida na Itália. Até agora já foram publicados os livros Frontiere perdute, racconti per viaggiare, do angolano José Eduardo Agualusa, Il caso del martello, do brasileiro José Clemente Pozenato, e Buona notte, signor Soares, do português Mário Cláudio. Com publicação prevista para este ano está Racconti, de Sérgio Faraco. Entre os brasileiros, estão dois gaúchos (Pozenato e Faraco), em razão do interesse que pode despertar naquele país a literatura produzida numa região marcada pela forte presença de imigrantes italianos, especialmente do Vêneto.


            Com apresentação, edição e tradução de Marco Bucaioni, os contos de João Melo, publicados pela primeira vez pela Editorial Caminho, de Lisboa, em 2006, fazem parte da nova literatura angolana, até aqui mais conhecida pelas obras de José Eduardo Agualusa (1960), Pepetela (1941), ganhador do Prêmio Camões de 1997, e Luandino Vieira (1935), que obteve o Prêmio Camões de 2006, recusado por razões pessoais. Sua temática principal é a descrição da nova sociedade angolana nascida da luta pela independência (1975) e da guerra fratricida que se seguiu entre as facções do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), apoiada pelo regime soviético com a participação direta do governo cubano, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), apoiada pelos Estados Unidos com a intermediação da África do Sul, dentro do contexto da Guerra Fria.


                                       II


            Mesmo com a queda do Muro de Berlim em 1989 e a derrocada do regime soviético, a guerra angolana só teve fim em 2002, depois de ter causado imensos danos ao país, inclusive com uma diáspora de muitos cidadãos que não tiveram outra saída a não ser tentar reconstruir a vida em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra e outros países europeus. Mas a Angola pacificada do século XXI já quase nada tem da colônia portuguesa de meio século atrás, isolada do mundo.


            Aberta a investimentos estrangeiros, é um país que apresenta grande crescimento econômico, especialmente nas áreas de diamantes, petróleo e recursos minerais. A grande dificuldade, porém, está na repartição dessa riqueza à qual não têm acesso grandes parcelas da população, que vivem em condições subumanas.                      


            Com esse período de conturbação já superado, a literatura angolana vive hoje outra fase, depois de ter explorado à exaustão as vicissitudes de uma sociedade pós-colonial sob o véu marxista-leninista. Agora, numa etapa em que já não podem atribuir todos os males ao colonialismo, os angolanos precisam buscar entre os seus pares os responsáveis pelo atraso econômico e pela manutenção de tantas diferenças sociais.


            Mas, encerrado há tão pouco tempo aquele período, é claro que os dissabores da guerra ainda estão presentes nestes contos de João Melo. É o que se pode contatar em “A morte é sempre pontual” em que o desfecho trágico, embora anunciado, acaba por surpreender o leitor.


            Ou em “O Canivete agora é branco” em que conta o reencontro que não se deu, 30 anos depois, de um ajudante de caminhão com seu antigo colega de profissão que, mais esperto, soube como cavar a vida, filiando-se ao MPLA, o movimento vitorioso, freqüentando a Universidade Patrick Lumumba, em Moscou, até virar quadro do partido e do governo para tornar-se administrador de uma empresa de diamantes e governador provincial. Metido até o pescoço em negócios escusos, o antigo Canivete transforma-se em empresário, virando até mesmo “branco”, sempre acompanhado de seguranças. Quem sabe uma paródia do “homem invisível” do norte-americano Ralph Ellison (1914-1994).


                                                           III


            Em “O escritor”, João Melo, abusando, no bom sentido, da ironia, traça o perfil de um homem de letras que vivia angustiado à espera do sucesso que nunca chegava, embora já tivesse escrito quilômetros de poemas, estórias, teses, ensaios e recensões literárias, além de construir uma carreira politicamente correta, pelo menos aos olhos dos vencedores, pois, durante o colonialismo, tivera de prestar muitas declarações à Pide (a polícia política salazarista) e, na fase pós-independência, participara da campanha nacional de alfabetização e das brigadas que foram colher café, sem contar que, durante a guerra anticolonialista, nunca fugira do país. Mesmo assim, nunca recebera um prêmio literário. Talvez porque não fosse nem mestiço nem branco.


            Já no conto que dá título ao livro, João Melo reconstitui a relação de dois adolescentes que teriam nascido e crescido a mesma época, entre famílias comuns, aos quais todos davam como certo um relacionamento seguro e um casamento duradouro: “Crescemos juntos. Brincámos de médico, professor, engenheiro. Brincámos de casamento. Brincámos de papá e mamã. Nesse dia, lhe mostrei a minha pila. Ela disse: “Ih, tão pequenina!” Depois levantou as saias: as suas cuecas floridas deixaram-me paralisado de admiração. Quando quis lhe dar um beijo, como aqueles que meu pai dava na empregada, quando a minha mãe não estava em casa, ela fugiu. Durante uma semana, não apareceu na minha casa”. (p.96).


            Por aqui se vê o estilo ágil e moderno de João Melo. E, se o final não se adianta aqui, é porque ao resenhador não é lícito antecipar os epílogos dos contos e romances que resenha.         Ao final deste livro, há ainda um glossário indispensável não só ao leitor italiano como ao lusófono pouco acostumado à história e à geografia de Angola. Muitas expressões do coloquialismo do português escrito em Angola ficaram de fora deste glossário, mas o seu significado o leitor pode intuir a partir do contexto de cada conto.


            Como se sabe, o português na África é uma língua restrita a escritores, jornalistas, pessoal do governo, professores e alunos, ou seja, àqueles que a escrevem. Até porque a imensa população é lusógrafa (para citar aqui uma expressão criada pelo mestre francês Jean-Michel Massa), não luso-falante. Cada grupo étnico fala a sua própria língua entre si e sempre que um estranho ao ninho deixa o recinto. Era isso o que este resenhador percebia quando, na casa de amigos angolanos, em Oeiras, ausentava-se para ir à casa de banho.


                                       IV


            Jornalista, publicitário e professor, João Melo estudou Direito na Universidade de Coimbra e em Luanda. Graduou-se em Comunicação Social e fez mestrado em Comunicação e Cultura no Rio de Janeiro. Membro-fundador da União dos Escritores Angolanos, ocupou vários cargos nessa entidade. Atualmente, é diretor de uma agência de comunicação, além de ensinar numa universidade privada. É deputado no Assembleia Legislativa angolana.


            Representante da “geração das incertezas”, expressão alcunhada pelo grande crítico angolano Luis Kandjimbo, também poeta, João Melo começou sua trajetória literária na poesia, nos anos 1980, tendo lançado oito livros: Definição (1985), Fabulema (1986), Poemas Angolanos (1989), Tanto Amor (1989), Canção do Nosso Tempo (1991), O Caçador de Nuvens (1993), Limites e Redundâncias (1997) e Auto-Retrato (2007). Como contista, lançou mais três livros: Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir (1998), The Serial Killer e outros contos risíveis ou talvez não (2000) e Filhos da Pátria (2001). Na área de ensaios, publicou Jornalismo e política (1991).


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IL GIORNO IN CUI PAPERINO SI È FATTO PER LA PRIMA VOLTA PAPERINA E ALTRI RACCONTI (O DIA EM QUE O PATO DONALD COMEU PELA PRIMEIRA VEZ A MARGARIDA), de João Melo. Tradução de Marco Bucaioni. Perugia: Morlacchi Editore, 205 págs., 2009. E-mail: [email protected]


Site: www.morlacchilibri.com


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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]



 

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