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26 DE NOVEMBRO DE 2025

Contos marcados pela melancolia

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I

Forjado no dia a dia do jornalismo, em estilo direto, permeado por imagens poéticas e, às vezes, bem-humoradas, embora um tanto niilistas, mas quase sempre marcadas pela melancolia, o livro Contos pelotenses (Florianópolis, Editora Insular, 2025), do gaúcho Lourenço Cazarré (1953), nascido em Pelotas, reúne 16 trabalhos publicados em obras anteriores do autor, entre 1984 e 2022.

Para o crítico e ensaísta André Seffrin, igualmente gaúcho, mas de Júlio de Castilhos, a obra reúne “histórias de solidão, melancolia, medo, morte; de perseguições e cercos, de encontros e desencontros, de desesperos e crimes de paixão, crimes bárbaros e demais encrencas da humana liça.

E nelas o suspense campeia sob o teto de uma áspera poesia”, diz no prefácio.

O que se pode acrescentar é que são contos que denotam marcante influência dos autores do realismo mágico ou fantástico que tanto moveram os corações e mentes dos jovens escritores das décadas de 1970 e 1980, muitos especialmente inspirados nos argentinos Julio Cortázar (1914-1984) e Jorge Luis Borges (1899-1986), no cubano Alejo Carpentier (1904-1980), na chilena Isabel Allende, no mexicano Juan Rulfo (1917-1986), nos uruguaios Mario Benedetti (1920-2009) e Juan Carlos Onetti (1909-1994), no norte-americano William Faulkner (1897-1962) e nos brasileiros Murilo Rubião (1916-1991), José J. Veiga (1915-1999), Dalton Trevisan (1925-2024), Rubem Braga (1913-1990) e Rubem Fonseca (1925-2020).

Sem esquecer de citar a influência de João Simões Lopes Neto (1865-1916), também nascido em Pelotas, que, em Contos gauchescos (1912), coleção de 19 contos ambientados no pampa, narra aventuras de proprietários rurais, peões e soldados, numa linguagem característica do interior do Rio Grande do Sul, como se comprova nas epígrafes dos contos “Meia encarnada dura de sangue, “Animais do banhado” e “A coisa mais tremenda que eu já vi messe banhado”, reunidos nesta obra de Cazarré.

Acrescente-se que influência nada tem de coincidência ou plágio, significando apenas uma maneira recíproca de ver o mundo e procurar retratá-lo com palavras.

II

No conto que abre a obra, “O cavaleiro”, vê-se a preocupação do autor em reproduzir o ambiente de decadência do pampa, mostrando um velho descendente dos antigos barões rurais que, empobrecido e isolado em sua grande casa na maior parte do tempo, só aos domingos saía para seu único passeio semanal, montado no cavalo que lhe havia restado. “Altaneiro como sempre, atravessava a cidade indiferente às piadas dos rapazes, aos xingamentos dos meninos e às buzinas dos carros”.

Já o segundo conto desta antologia, “Enfeitiçados todos nós”, é aquele que deu título ao livro que conquistou o Prêmio Nestlé de 1984 e que, como os demais, tem como cenário a cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, torrão natal do escritor, aqui disfarçada com a denominação de Tapera, palavra que quer dizer “campo arrasado, bandeira aviltada, barco à deriva”.

O conto não recupera a história de nenhum personagem, mas, como numa conversa com o leitor à beira de uma fogueira, com o chimarrão à mão, discorre sobre cinco feitiços que marcam a vida passada naquela “cidade fantasmal”, que seriam a umidade que se infiltra nas paredes das casas, o calor que faz os homens “arrebentarem os botões do colarinho”, a chuva que destrói a vegetação, o vento que faz “revirar os olhos das raparigas nos seus leitos incendiados de virgens maculadas” e, por fim, o frio, que “percorre todos os andares de nossas costelas e faz com que sejamos homens macambúzios e cismáticos”.

III

Um conto em que Cazarré se vale de sua experiência em redações de grandes diários é “A arte excêntrica dos goleiros” em que discorre sobre a missão que um editor passou a uma jovem jornalista para que entrevistasse um ex-jogador para uma edição especial sobre os grandes craques do passado. “Ele, como o maior goleiro da cidade, o maior de todos os tempos, tinha que ser ouvido, de qualquer jeito”.

Mais adiante, o narrador conta: “A repórter voltou-se interessada para o entrevistado.

Tentava imaginar como seria o menino loiro que havia se transformado naquele homem de rosto inexpressivo, o garoto que com muita atenção observava os movimentos do tio: ajeitando as joelheiras esfiapadas, vestindo as meias com cuidado para evitar bolhas, apertando os cadarços da chuteira e ajustando as negras luvas de couro”.

E aqui não se avança o desfecho do conto para não se tirar do leitor o prazer da leitura, mas se reproduz estas frases entre aspas para que tenha uma ideia da surpresa que o espera.

Só se pode acrescentar que o famoso goleiro havia se inspirado num tio que igualmente ocupara aquela posição em campo.

Outro conto que serve para o futuro leitor como exemplo à perfeição do estilo límpido, conciso e de adjetivos audaciosos de Cazarré é “O homem que amava os clássicos russos” em que se lê sobre a vida de um personagem solitário, “seco de carnes, estatura mediana, cabelos grisalhos”, que, aos cinquenta anos, vivia sozinho, depois de ter vivido “por mais de trinta anos” apenas entre as rameiras e que, agora, na solidão, preferia “a loucura risonha de Gógol” e “a leveza trágica de Tchecov”, pois já não se sentia jovem para escolher “o gigantesco Tolstói ou o amargo Dostoievski”.

E que, sem maiores alternativas, decidiu colocar fogo em sua biblioteca, talvez porque os “deuses são sempre mais impiedosos com os que leem muito”.

IV

Lourenço Cazarré formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) em 1975.

Depois de um breve período como operador de telex, trabalhou um ano como repórter na sucursal de Pelotas dos jornais Correio do Povo, Folha da Manhã e Folha da Tarde, que pertenciam à empresa Caldas Júnior, de Porto Alegre.

Em junho de 1976, transferiu-se para Florianópolis, onde permaneceu por seis meses como repórter da sucursal local do grupo Caldas Júnior, antes de se transferir para a redação do jornal O Estado.

Como escritor passou a ser reconhecido depois que ganhou a I Bienal Nestlé, em 1982, com o romance O calidoscópio e a ampulheta (1983), em que conta as desventuras de um ditador livremente inspirado em Getúlio Vargas (1882-1954).

Em 1977, transferiu-se para o Distrito Federal, onde passou a trabalhar como redator do Jornal de Brasília.

Por essa época, já escrevia contos que publicava onde podia. Em 1979, começou a escrever Agosto, Sexta-Feira, Treze, seu primeiro romance, publicado em 1981.

Depois de um retorno ao Rio Grande do Sul, estabelecendo-se na praia de Laranjal, na costa oeste da Lagoa dos Patos, onde viveu dos parcos recursos acumulados com os empregos e os prêmios literários conquistados, voltou a Brasília.

Dessa época, são os contos da primeira edição de Enfeitiçados todos nós (São Paulo, Melhoramentos, 1984).

Em 1983, na capital federal, passou a trabalhar em uma assessoria de imprensa na Câmara dos Deputados.

Depois, tendo sido aprovado em concurso para professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, retornou para Pelotas, mantendo-se em trânsito entre o Rio Grande de Sul e Santa Catarina por alguns meses, até desistir da carreira e transferir-se definitivamente para Brasília.

Em 1987, exerceu por alguns meses a função de chefe de editoração da Editora da Universidade de Brasília (UnB), até que, em 1988, aprovado por concurso público, assumiu o cargo de redator no Senado Federal, onde trabalhou até se aposentar.

Atualmente, é colaborador do jornal Correio Braziliense.

Autor profícuo, Cazarré publicou mais de 40 livros, desde romances e coletâneas de contos a novelas juvenis, entre os quais se destacam o romance A longa migração do temível tubarão (2008) e as novelas Nadando contra a morte (1998), Estava nascendo o dia em que conheceriam o mar (2011) e Os filhos do deserto combatem na solidão (2016).

Em 2018, com Kzar, Alexander, o louco de Pelotas (Curitiba, Editora Paraná, 2018), venceu na categoria romance o Prêmio Paraná de Literatura, promovido pela Biblioteca Pública do Paraná.

O romance premiado trata da paixão alucinada de um homem pela literatura. “Mas é um livro multifacetado que pode ser visto também como um elogio à arte do conto, uma grande brincadeira em torno da figura do narrador ou até mesmo, na sua camada mais superficial, como um romance policial”, segundo Cazarré.
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Contos pelotenses, de Lourenço Cazarré. Florianópolis, Editora Insular, 184 páginas, R$ 64,00, 2025. E-mails: [email protected] [email protected] Site: www.insular.com.br

 

Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-Latas da Madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Robbin Laird, editor, 2024), publicado os Estados Unidos e na Inglaterra. E-mail: [email protected]

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