Da ágora às telas: ecos de uma cidade exausta | Boqnews
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Opiniões

01 DE SETEMBRO DE 2025

Da ágora às telas: ecos de uma cidade exausta

Alessandro Lopes

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Outro dia, entre café e notícias, me peguei pensando na ágora.

Não a das ruínas gregas que hoje atraem turistas, mas aquela viva, de vozes, onde o sol caía sobre corpos presentes e palavras erguiam cidadania.

Política, comércio e religião se misturavam na praça como se o destino da pólis fosse inventado a cada manhã.

Roma herdou esse fogo e o moldou em pedra. Estradas, fóruns, aquedutos: a cidade transformada em monumento.

Mas o fórum, antes encontro, virou palco de poder. Roma acreditou na eternidade do mármore e esqueceu a alma.

Não ruiu de repente. Foi apagando-se devagar, como lâmpada cansada. Senadores falando sozinhos, povo entretido com pão e circo, desigualdade cavando fissuras.

Roma não caiu. Adormeceu.

Olho ao redor e reconheço o roteiro. Nossa ágora é digital: veloz, barulhenta, quase sem escuta.

A civitas ainda respira nas constituições, mas tantas vezes se reduz a ringue. A cidade tornou-se global, megalópoles que escondem estrelas e devoram rios.

Elites erguem torres de vidro enquanto multidões sustentam a engrenagem em silêncio. O espetáculo não acontece mais no Coliseu. Vibra no bolso.

O cinema já pressentia. Em 1926, Fritz Lang filmou Metrópolis: subterrâneos sem sol, máquinas que devoram homens, elites suspensas acima da cidade.

Cem anos depois, soa como profecia. Manchetes confirmam: discursos buscam plateia, não diálogo; tribunais viram palco; promessas oferecem miragem em lugar de futuro.

Narrativas empilhadas como troféus, enquanto milhões sustentam engrenagens invisíveis.

O risco não está em bárbaros às portas. Está na implosão de um planeta exausto de ser explorado sem pausa.

A desigualdade ergue muralhas cada vez mais altas. A política se entrega ao espetáculo.

A cidadania ameaça dissolver-se em algoritmos que separam mais do que unem. Pergunto: ainda dá tempo?

Talvez. Se resgatarmos algo da pólis. Se devolvermos sentido à praça. Se abrirmos novamente o espaço comum como encontro e escuta.

Se ousarmos reescrever o roteiro que Roma ensaiou e Metrópolis projetou em sombras e clarões.

Porque a maior de todas as cidades já está diante de nós: a Terra, frágil e comum.

E só há um caminho se quisermos seguir adiante: transformar telas em janelas, algoritmos em pontes, multidões em comunidade.

Que nossas ágoras digitais voltem a pulsar como presença e diálogo.

Antes que reste apenas a ruína iluminada por hologramas, e o silêncio da Terra nos pergunte, tarde demais: onde estávamos?

 

Alessandro Lopes é arquiteto e urbanista, mestre e pesquisador em Cidades Criativas e Inteligentes

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