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Opiniões

30 DE MAIO DE 2013

Escravos da maratona

Por: Da Redação

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Encontrar outras
pessoas no dia-a-dia, sem o desejo de conversar com elas, envolve duas
estratégias para evitar contato. A primeira delas é antiga e mecânica. Basta
perguntar “tudo bem?” sem diminuir o ritmo da passada. A tática também inclui
contato visual mínimo.

Do
outro lado, virá uma resposta não menos automática, nem sempre seguida de
interrogação. O encontro casual de mínimo interesse mútuo significa somente o resquício
de civilidade que esconde nossas selvagerias nos detalhes cotidianos.

A
segunda estratégia finge ser um pouco mais amável, mas, no fundo, se limita a atender
às nossas necessidades de parecermos bem. No caso, de parecermos ocupados,
atarefados, reconhecidos; acima de tudo, importantes.

Eis
a resposta: “Na correria!”. Se quiser ênfase na imagem de operário-padrão,
acrescente: “Na maior correria!!!”

Adoramos
a aparência de produtivos. Realmente, trabalhamos demais e pagamos um preço
alto por isso, enquanto recebemos de menos. É a lógica do sistema econômico. Só
que não há grandes novidades. Mas, na era da imagem, nos sentimos na obrigação
de parecermos úteis, cheios de compromissos e, ao mesmo tempo, necessitamos
assassinar o ócio.

Um
amigo paulistano reclamava que, aos domingos, desejava ficar em casa sem fazer nada,
como um lagarto ao sol. A esposa o arrastava para alguma atividade física no
Parque do Ibirapuera. No final das contas, ele não queria ver ninguém e muito
menos ser visto. Na prática, percebia que a esposa se sentiria culpada se não
houvesse algo a realizar, além de alardear o feito para as pessoas com quem
conviviam. 

A
correria precisa de publicidade. Não basta correr, tem que gritar durante a
maratona. O marketing pessoal, uma das perversões da aparência, é fundamental
para que o sujeito construa uma aura de imprescindível. O manto do
insubstituível envolve contar aos outros – que parecem poucos interessados em
ouvir – as realizações do capítulo anterior de nossas vidas, mesmo que a
narrativa seja sem graça e previsível, como a maior parte do tempo em quaisquer
biografias.

Correr
demais implica em perda de audição. Perdemos – se é que tivemos – a capacidade
de dialogar, de se interessar por aquilo que o outro tem a dizer. Fingimos
ouvir, enquanto pensamos nos próximos itens da lista de afazeres. Aliás, muitos
morreriam se perdessem a tal da check list (denominar em inglês valoriza o
objeto, claro).

A
conversa se transforma em dois monólogos, por vezes repetitivos porque as
obrigações se assemelham, e as pequenas diferenças se perdem no excesso de
saliva gasta. O diálogo, como elemento de aprendizado ou simples troca de
ideias, está morto.

Optamos,
quando escravos da produtividade, em subir no ranking da quantidade de pontos,
o que reduz à vala comum as cenas especiais da nossa existência ordinária.
Corremos, mas será que vivemos? Aceleramos, mas será que entendemos o que se
passa conosco? Entre a lebre e a tartaruga, ficamos com quem ao deixarmos de
refletir sobre os caminhos?

Na
propaganda da correria, os fatos não necessitam de comprovação. Vale o
discurso, prevalece o espelho da autorreferência. É o caso de uma ex-colega de
trabalho que nunca podia ajudar na realização de tarefas. Ela sempre alegava
que a correria a atrapalhava até que se descobriu que o corre-corre não saia do
triângulo casa-academia-casa do namorado. A propaganda enganosa só pôde ser
combatida com o silêncio, diante da real crença de que as tarefas a consumiam.

No
último domingo, o jornal Folha de S. Paulo publicou matéria sobre a última moda
em empresas dos Estados Unidos. Trabalhar em cima de esteiras faz com que os
empregados mantenham a produtividade e se mantenham em forma. Os médicos – como
agravante – atestam a prática como saudável.

A
única queixa dos empregados, contentes com a aparência de produtivos e
saudáveis, é que não dá para escrever direito em cima do equipamento, que vem
adaptado com uma mesa. A ironia é que estes sujeitos, literalmente, podem dizer
– quando encontram alguém – que vivem na “maior correria.”

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