Sobre a polêmica da mudança de nome da Rua Guaiaó, no Aparecida, socorro-me do indispensável “Conheça Santos!”, obra de Olao Rodrigues, da qual recebi de meu avô um exemplar com dedicatória do autor, 50 anos atrás.
Nela, Rodrigues cita o historiador Francisco Martins dos Santos, que em sua fundamental “História de Santos” trata das origens toponímicas da Ilha de São Vicente, bem antes da chegada do colonizador europeu.
Segundo este autor, Guaiaó tem o sentido de terra separada pela força do continente, por evento da natureza.
Ou seja, uma ilha. A nossa ilha.
Rodrigues também identifica a denominação da via pelo Decreto Lei nº 423, de 4 de julho de 1946, do prefeito Dr. Edgardo Boaventura, que denominou a Rua Aprovada nº 396, no então bairro Ponta Praia.
Sem entrar no mérito da pretendida homenagem ao famoso construtor lusitano, cujas práticas empresariais no mínimo heterodoxas transformaram o Aparecida em uma nova centralidade e ampliaram sua fortuna, soa estranha a proposta de mudança de nome da via que homenageia justamente nossas origens mais remotas.
Logradouros mudam de denominação ao longo da história, registrando no espaço urbano o espírito do tempo.
Isso não é novo, nem exclusivo de Santos, em que algumas vias centenárias já trocaram de nome mais de uma vez.
Mas há que se considerar que a denominação de logradouros dá o sentido de pertencimento a seus moradores e frequentadores.
Assim, deve-se ter cuidado com essas homenagens, sobretudo garantindo que a sociedade local seja ouvida democraticamente.
Pensando nisso, em 2000, a Câmara Municipal derrubou o veto do prefeito Beto Mansur e sancionou a Lei Complementar nº 390, de 18 de maio, de iniciativa da vereadora Cassandra Maroni Nunes, que criou critérios democráticos de consulta popular, como requisito para alteração do nome de vias, em Santos.
Na época, vivia-se uma profusão de tentativas de mudança de nomes de logradouros, por parte de edis cuja prática parlamentar é mais voltada para a busca de apoios políticos por meio da adulação, do que para suas funções precípuas, quais sejam legislar e fiscalizar o Executivo.
Esta norma foi lamentavelmente revogada pela Lei Complementar nº 1.201, de 9 de maio de 2023, de autoria do vereador Adilson Junior.
Sua sanção pelo prefeito guarda estranha sincronicidade com a proposta de mudança da denominação da Rua Guaiaó, abrindo as portas, também, para a alteração do nome de qualquer via, sem satisfação aos seus moradores e proprietários de imóveis, que terão que lidar com os óbvios inconvenientes que a alteração trará para suas vidas, e com prejuízo para toda a sociedade, que assim vai perdendo suas referências históricas.
Mas em tempos decoloniais, quando se torna fundamental repensar a conexão de nossa terra com suas origens e práticas sociais, projetando um futuro de afirmação da identidade e soberania do povo brasileiro, é irônico trocar o nome de um logradouro que homenageia essas origens pelo de um imigrante da nação que nos colonizou.
Sou descendente de português e tenho orgulho disso, mas valorizo minha Santos natal acima de qualquer lugar.
Por isso prezo pelas nossas origens, mesmo as mais remotas, assentadas na cultura dos povos que por aqui estiveram antes dos colonizadores e ajudaram a formar nosso caráter como povo e como urbe.
Mesmo que a força política dos proponentes dessa homenagem prevaleça, a Rua Guaiaó estará sempre lá no Aparecida, a lembrar quem somos, apesar dos que querem apagar nossa memória.
José Marques Carriço é arquiteto e urbanista
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