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Fachada principal - Projeto da Hospedaria de Imigrantes de Santos Imagem: Museu da Imigração do Estado de São Paulo/Reprodução: Site Novo Milênio

Opiniões

06 DE NOVEMBRO DE 2025

Um lugar que ainda espera por si mesmo

Alessandro Lopes

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Numa Santos ainda jovem, o mar parecia mais próximo das ruas e o porto, um grande coração pulsando entre o sal e o vapor.

Era tempo de travessias, de malas e promessas. Ali, em 1912, ergueu-se um edifício de tijolos claros e janelas altas.

Chamaram-no Hospedaria dos Imigrantes. Nicolau Spagnolo o desenhou para acolher quem chegava de longe, trazendo na bagagem o idioma da esperança.

Mas quando ficou pronto, o destino já havia mudado. Os imigrantes seguiam direto para São Paulo e o prédio nasceu com o coração vazio.

Vieram armazéns, cooperativas, café, contêineres. O que fora criado para abrigar pessoas virou abrigo de cargas.

Em 1998, o tombamento o reconheceu como patrimônio, mas decreto algum detém o tempo.

O sal subiu pelas juntas, o vento aprendeu o caminho entre as frestas e o abandono se fez hóspede permanente.

Mesmo assim, a cidade nunca o esqueceu. Pesquisadores e arquitetos o transformaram em objeto de estudo e afeto.

Mapearam sua estrutura, resgataram memórias, imaginaram futuros. Surgiram projetos de reuso, propostas acadêmicas e ocupações culturais.

Mais recentemente, o edifício voltou a ser pensado como espaço multifuncional com habitação, comércio e cultura.

Hoje, discute-se seu futuro com mais maturidade. Fala-se em cultura, habitação e reuso, mas também em pertencimento.

O desafio está em equilibrar custos, usos e acessibilidade para tornar viável o restauro.

Não é apenas sobre planilhas, é sobre o que o prédio ainda representa para a cidade que o gerou.

Reabilitar não é voltar atrás, é reencontrar sentido.

A cidade que preserva aprende a ouvir o tempo.

Reocupar não é só construir, é curar.

Os técnicos medem fissuras, os gestores planejam verbas, os arquitetos desenham soluções.

Mas o que o prédio pede é mais simples e mais difícil: vontade pública, escuta e cuidado.

Se ruir, perderemos não só um bem tombado, mas um pedaço da alma urbana que resiste no porto.

As janelas ainda olham o mar. Quando o sol as toca, o tijolo parece aquecer por dentro, como quem ensaia o primeiro respiro depois de um longo inverno.

Talvez este seja o instante em que o tempo cumpra o que prometeu: devolver à cidade a coragem de sonhar com ela mesma.

Há lugares que não esperam reforma, esperam reencontro.

Porque há edifícios que guardam o futuro, e há cidades que só renascem quando decidem habitar, outra vez, o seu próprio passado.

 

 

Alessandro Lopes é arquiteto, mestre e pesquisador em Cidades Criativas e Inteligentes. Consultor Instituto MultipliCidades

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