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09 DE OUTUBRO DE 2025

Uma obra na linhagem dos grandes escritores

Adelto Gonçalves

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I

Trinta e sete anos depois da primeira edição publicada pela Editora Scipione, de São Paulo, o romance Mil corações solitários, de Hugo Almeida, que conquistou o Prêmio Nestlé de 1988 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1987, este com o título de Carta de navegação, chega a sua quarta edição, agora pela Editora Sinete, também de São Paulo.

As outras duas edições saíram pela Scipione, em 1991 e 1994.

A obra, desta vez, traz posfácio do escritor mineiro Ronaldo Cagiano, radicado em Portugal, bem como um adendo, uma carta de amor, notícias e artigos sobre o romance, em ordem cronológica.

Para Cagiano, trata-se de “uma obra de tamanha força imagética e carga semântica” que significa “um alento e um frescor no meio do lixo literário ungido pelo mercado editorial”.

De fato, é um livro que mantém o seu vigor, assumindo-se como um romance diferenciado em que o autor se vale de várias técnicas ficcionais, utilizando outras formas de prosa, como monólogo, diálogos e entrevista, e poesia, sem deixar de fluir o fluxo de consciência.

Em breves palavras, o que se pode acrescentar é que a obra conta a sofrida história de vida de Níobe, por meio de cartas que ela escreve, num estilo livre e até num português pouco culto, mas fiel à personalidade da personagem (com o tempo, a linguagem e a personalidade dela ganharam vigor), sobre a infeliz e decepcionante existência que passa a levar depois do casamento com Gamaliel Carvalho, um tipo silencioso e enigmático (mais tarde parece ser alguém ligado à polícia ou aos ditadores da época), mas que poderia lhe dar uma sobrevivência garantida, como assim imaginou o pai dela, ao forçá-la a se casar com ele.

Para sobreviver àquele casamento abusivo e sem saída, cuja consumação no leito demorou tempos para se dar, Níobe escreve essas cartas dirigidas à própria mãe, o que continuou a fazer mesmo depois da morte da genitora, como se continuasse a ter contato com ela no além. Para se ter uma ideia do estilo sóbrio, seguro e inventivo de Hugo Almeida, basta a leitura deste trecho:
“(…) Mãezinha é assim mesmo, o homem demora para dormir sem roupa com a mulher depois que casa? Ele vai esperar quanto tempo? Me responda logo porque eu não tenho ninguém aqui para conversar sobre essas coisas e aí nem pensei em perguntar porque eu nem sabia que isso ia acontecer. Eu não sabia mesmo era de nada como agora. Papai decidiu tudo rápido, nem adiantou eu bater o pé a Senhora lembra. Mas eu aceito ser casada mas só que eu não vivo ainda assim como mulher casada, quer dizer nem mulher de verdade eu não sou até agora.

II

Fosse como fosse, um dia, haveria a consumação do ato carnal e Níobe seria mãe de René e Ana, que constituiriam também parte das rememorações da vida insípida que ela continuaria a viver com Gamaliel, este sempre enfurnado em seu escritório, homem de mentalidade arredia, que só podia oferecer à mulher uma casa vazia de sentimentos.

Como diz José Carlos Garbuglio, professor aposentado de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), em texto publicado nas abas das três primeiras edições do livro e reproduzido no adendo da quarta, “as cartas constituem um longo monólogo” com o mundo imaginário da personagem.

Porém, mais que isso, a obra, fragmentária e perpassada por momentos poéticos, oferece flagrantes de um Brasil que ficou no passado, como o suicídio do então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) e outros episódios marcantes da história brasileira dos anos 50 até o início dos anos 80 do século passado, que marca a abertura política depois de 21 anos de uma ditadura civil-militar (1964-1985) que só infelicitou e atrasou o desenvolvimento da Nação.

Avalizado por dois grandes prêmios literários, com esta obra, como observa a escritora, ensaísta e psicanalista Ana Cecília Carvalho, no texto de apresentação que consta da “orelha” do livro, Hugo Almeida “alcança a linhagem de grandes escritores brasileiros contemporâneos”.

O que, de fato, tem sido confirmado pelos seus mais recentes livros, como o romance Vale das ameixas (São Paulo, Editora Sinete, 2024; reeditado agora em 2025), que tem elos com a obra do escritor Osman Lins (1924-1978).

É de se ressaltar que o romancista e contista Hugo Almeida é autor da tese de doutoramento “Osman Lins: a chama grega do cárcere Brasil”, defendida em 2005 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP, sob a orientação do professor doutor Valentim Aparecido Facioli (1942-2024), em que analisa aspectos até então pouco estudados de A rainha dos cárceres da Grécia (1976).

Já o romancista e crítico literário Álvaro Cardoso Gomes, professor titular da FFLCH-USP, que participou do júri do Prêmio Nestlé de 1988, em recente recensão do livro publicada no site Baía da Lusofonia, de Lisboa, observou que “Hugo Almeida talvez seja o escritor brasileiro que manifesta em sua obra os sinais mais visíveis da ruptura do convencional na prosa, de certa forma, dando continuidade aos experimentos geniais de Osman Lins, em Nove, Novena e Avalovara”.

Para o professor, com este romance inovador, o autor, ao emular com ironia a escrita sentimental dos folhetins, “irrompeu no panorama da literatura brasileira moderna com audácia e coragem, dando assim um vigor novo à nossa ficção”.

III

Mineiro radicado em São Paulo desde 1984, Hugo Almeida (1952), jornalista formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1976, é autor também de Certos casais, contos (São Paulo, Editora Laranja Original, 2021), e A voz dos sinos – o sagrado, a mulher e o amor na obra de Osman Lins (São Paulo, Editora Sinete, 2024), seu décimo sexto livro e o primeiro de estudos literários.

Filho de engenheiro e professora, ele baiano, ela mineira, Hugo Almeida nasceu em Nanuque, em Minas Gerais, mas deixou a cidade natal antes de completar dois meses.

Passou a maior parte da infância em Jequié, na Bahia, cidade banhada pelo rio de Contas, que aparece em Viagem à lua de canoa (São Paulo, Nankin Editorial, 2009), reedição de Mais rápido do que a luz (São Paulo, Editora FTD, 1988), livro selecionado pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Ministério da Educação, em 2011.

Depois, viveu um ano em Alagoinhas, também na Bahia, e, aos 9 anos, mudou-se com a família para Belo Horizonte, onde viveu 22 anos e estreou na literatura com Globo da morte, contos (Edição Alternativa, 1975).

Também publicou Em teu seio Liberdade, contos (São Paulo, EMW Editores, 1985), a novela juvenil Porto Seguro, outra história (São Paulo, Nankin Editorial, 2005), os infantis Todo mundo é diferente (São Paulo, Lê Editora, 1996), Pare, olhe, siga: boa viagem (São Paulo, Editora Ícone, 2000), e Que dia será o dia? (São Paulo, Nankin Editorial, 2007), além da novela Meu nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora Dimensão, 2009), de Menino anjo capeta beija-flor (Ananindeua-PA, Edições 1/4, 2019) e dos infantojuvenis Cinquenta metros para esquecer, contos (São Paulo, Didática Paulista, 1996) e de Minha estreia no crime – Estação 111, romance (São Paulo, Lê Editora, 1997), inspirado do massacre do Carandiru, ocorrido a 2 de outubro de 1992, em São Paulo.

É um dos participantes da antologia Quando não estávamos distraídos (São Paulo, Editora Sinete, 2023).

Organizou e prefaciou Osman Lins: o sopro na argila (2004), ensaios; e com Rosângela Felício dos Santos organizou Quero falar de sonhos, reunião de artigos do autor de Avalovara (São Paulo, Hucitec Editora, 2014).

Organizou as coletâneas de contos Nove, novena: variações (São Paulo, Olho d’Água, 2016), que reúne narrativas inspiradas na obra de Osman Lins, e Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2020), obra da romancista e contista Clarice Lispector (1920-1977), que foi incluída no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Cultura, de 2021, para o ensino médio.

Profissionalmente, sempre trabalhou como jornalista, com longa carreira na redação do jornal O Estado de S. Paulo.

Mantém o site https://hugoalmeidaescritor.com.br
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Mil corações solitários, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Sinete, 4ª edição, 228 páginas, R$ 65,00, 2025. Site: www.editorasinete.com.br E-mail: [email protected]

 

 Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra e Estados Unidos. E-mail: [email protected]

 

 

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