Uma senhora sábia | Boqnews

Opiniões

01 DE ABRIL DE 2011

Uma senhora sábia

Por: Da Redação

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Minha avó viajou há dois anos. Não voltou
mais. Se fosse uma criança, talvez engolisse a justificativa que mascara a
finitude. Como adulto, finjo aceitar a explicação para atordoar a saudade.

A personalidade incomum começava pelo nome
incomum. Norvina não é exatamente a última moda nos cartórios ou nas revistas
de pais e filhos. E não é único. Outras duas mulheres receberam o mesmo nome,
na mesma cidade, no interior de Minas Gerais. E nasceram na mesma época. Talvez
uma tendência local; assim, incomum. Ou um instante de criatividade coletiva.

Dona Norvina foi a pessoa mais sábia que
conheci. A sapiência dela não estava nos livros nem nos diplomas que nunca
teve. Saber não era arrotar informação de almanaque. Saber era explodir em humanidade. Explosão
que significava mastigar, em si, o melhor e pior, sem se martirizar por tal
condição.

A profundidade do relacionamento entre nós
se sustentou, nas minhas lembranças, pelas sutilezas das pequenas experiências.
São os detalhes de rodapé de página que representaram e reforçaram o amor que
transitou pela plenitude do enredo. Era ela quem estava na janela quando fui
pela primeira vez sozinho ao cinema, aos 10 anos. Não olhei para trás, mas
tenho a convicção de que estava lá, como zeladora fiel.

Ela protagonizou, certamente, o jogo de
futebol mais rápido da história. Da minha história. Um jogo de futebol de
botão, o microclássico entre Santos e Corinthians. Como corintiano e neto, dei
a saída. Em três toques, o primeiro chute a gol. Corinthians um a zero. Bola no
centro do estrelão.

O Santos daria a saída. O excesso de força
da “treinadora”, apresentada ao “esporte” cinco minutos antes, resultou na
quebra – ao meio – do camisa 10 da Vila Belmiro. Dei a partida por encerrada e
guardei, como relíquia, aquele time eternamente destinado ao desfalque.  

Dona Norvina era uma jornalista honoris
causa, ao menos na análise crítica dos telejornais. Minha mãe perguntou a ela porque
assistia apenas um telejornal à noite e, após o término, rumava para a cama.

— Por que ver outro jornal? Quem viu um,
viu todos!

A serenidade se caracterizava pelo silêncio
e pela observação inteligentes, permeada por frases (hoje, soam como citações
dignas de serem perpetuadas) diretas, definitivas.

Muitas vezes, me dou conta que repito para
minha filha, Mariana, de oito anos, lições nada professorais de Dona Norvina.
Quando atravessávamos uma avenida movimentada, ela me alertava:

— Corre que os carros estão fazendo 120!

A velocidade fictícia dos veículos me ajudou
a compreender como a senhora foi devorada pela velocidade real e soube dar as
costas para ela. Preferiu retornar às origens por perceber que as relações
humanas reais, olho no olho, salvam as mais profundas necessidades e desejos de
qualquer um.

A sabedoria se tornava discreta pela
contaminação da mineirice, que assegurava o humor de quem ditava a brincadeira pelo
canto de boca. A brincadeira de quem enganava o neto ao encher uma velha
garrafa de Campari com groselha Milani e se divertia com as reações dos
adultos, assustados por ouvir de uma criança que a avó incentivava o consumo de
bebidas alcoólicas. Em doses diárias, aliás, cheias até a boca em copo de
requeijão.

O rosário de “causos” não cabe na palavra
escrita, mas traz, no mínimo, um voto de confiança. As pequenas experiências
devem indicar um olhar de aprovação do leitor que nos acompanhou neste texto.
Os detalhes vão parir identificação e, principalmente, a ideia de que a perda,
embora dolorosa, restaura as imagens amareladas pelo tempo que morre e renasce no
eterno retorno da convivência. Ainda que imaginativa.

Contato:
[email protected]

Para
acessar outros textos:
www.conversasedistracoes.blogspot.com

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