Um dos assuntos que gerou debate nas últimas semanas é sobre o Projeto de Lei 1904/24 do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, que equipara o aborto de gestação, inclusive em casos de estupro, acima de 22 semanas ao homicídio. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), informou na terça-feira (18) que irá criar uma comissão para debater o projeto de lei e que a proposta terá debate no segundo semestre após o recesso parlamentar.
Diversas manifestações contra a proposta ocorreram no Brasil. Em Santos, por exemplo, no último domingo (16), feministas e movimentos sociais foram às ruas para o Ato Criança Não é Mãe, Estuprador Não é Pai. Centenas de pessoas, especialmente mulheres, ocuparam a Praça das Bandeiras e seguiram em caminhada pela praia de Santos, entre o bairro do Gonzaga e o Canal 4 para dizer não à proposta.
A realidade das mulheres do Brasil é dimensionada no 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública: 2023. No ano passado, o Brasil teve 74.930 estupros, a maior marca da história. Além disso, 56.820 foram estupros contra vulneráveis. Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, houve no ano passado, 2.687 casos de aborto legal, de 15 a 19 anos, foram 291 abortos e com meninas até 14 anos foram 140 casos.
O que acontece?
A proposta muda o Código Penal. Atualmente, ela não pune o aborto em caso de estupro e não prevê restrição de tempo para o procedimento nesse caso. O código também não condena o aborto quando não há outra forma de salvar a vida da gestante. Com exceção desses casos em que não há punição, o código prevê prisão de um a três anos para a mulher que realizar o aborto e reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provocar aborto com o consentimento da gestante. Além de reclusão de três a 10 anos para quem provocar aborto sem o consentimento da gestante.
De acordo com o texto em pauta na Câmara, a mulher que fizer o procedimento, se receber condenação, poderá cumprir pena de 6 a 20 anos de prisão, assim como em casos de gravidez decorrente de estupro. Portanto, a pena é a mesma prevista para o homicídio simples. Além disso, por esse mesmo Código Penal, um estuprador que realize crime contra uma menor de 18 anos e maior de 14 anos pode ser punido entre 8 a 12 anos. Caso a vítima for maior de idade, a pena varia de 6 a 10 anos. Ou seja, a pena para a vítima, conforme a proposta, será maior que a do autor do crime.
Abortos
Gravidez decorrente de estupro, anencefalia fetal (má formação que ocorre durante a gestação) e gestação representando risco de vida à mulher, há garantia legal para que a mulher realize o aborto.
Em Santos
Para ter noção, segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan Net) e a Seção de Vigilância Epidemiológica (Seviep), o número de notificações de violência sexual de 1 a 4 anos, residentes em Santos, de 2018 a 2022 chegou a 72. As crianças entre 5 e 9 anos foram 104 episódios. Já com faixa etária entre 10 e 14 anos ocorreram 133 casos.
Além disso, um dado importante para ter noção: no ano de 2022, 95 casos de violência sexual ocorreram na Cidade, sendo 71,6% notificados foram de crianças e adolescentes entre a faixa etária de 1 ano a 19 anos. O número é o quarto menor dos últimos cinco anos.
Agressores
Conforme o estudo, em 2022, 21,1 % dos possíveis agressores eram amigos/conhecidos. Um número alarmante é que entre 2020 e 2022, o pai ficou em terceiro lugar como os supostos agressores. No primeiro ano, a porcentagem foi de 13,2%. Em 2021, foi 16,5% e 8,4% em 2022.
De acordo com o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, 61,4% das vítimas de estupro no Brasil possuem até 13 anos e dentre os agressores, 64,4% são familiares e 86,1% são conhecidos das vítimas.
Segundo a sexóloga e coordenadora do CEVISS – Comissão Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, Christiane Andréa, a violência possui vários fatores. Sendo assim, entre eles a desigualdade socioeconômica, a desestruturação familiar, questões de alcoolismo, drogas, e transtornos mentais. Portanto, em caso de qualquer suspeita de violação de direito contra crianças e adolescentes deve ser comunicado ao Conselho Tutelar, porém em caso de risco iminente, deve se acionar a Delegacia da Mulher.
Um ponto impactante é que a violência sexual cresceu dentro de casa durante a pandemia em Santos. Afinal, entre 2020 e 2021, a residência foi o lugar com mais ocorrências. Para ter ideia, em 2020, ocorreram 40 casos, com um percentual de 58,8%. Já no ano seguinte, a taxa foi de 67%, com 65 casos.
“Desde o início da pandemia do novo coronavírus, mulheres passaram a ficar 24 horas em casa, muitas vezes, com seus agressores. Tal fato elevou a preocupação com a violência doméstica e familiar contra a mulher. De olho nisso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) reuniu tudo o que é preciso saber sobre o tema e as formas de auxiliar e denunciar nesses casos”, afirma a sexóloga.
O que motiva?
De acordo com Christiane, o que motiva o aborto no caso de violência sexual contra crianças e adolescentes é, como fato mais relevante, a gravidez de risco dependendo da faixa etária da criança ou da adolescente. Já o segundo fator é a questão de ter que se conviver com uma criança fruto de um estupro. E o terceiro é de ter que levar uma gestação inteira e após isso entregar a criança para adoção, o que causa danos psicológicos à gestante.
Ela informa que quando as crianças descobrem que estão grávidas, elas se sentem invadidas, violadas e perturbadas e podem apresentar diversos sintomas, como: angústia de que algo se quebrou dentro do seu corpo, sentimento de culpa, perturbações do sono, dores abdominais, podendo ter perda de urina e fezes, distúrbios alimentares, entre outros. Já as adolescentes podem apresentar sequelas que dificultam sua evolução psicoafetiva e sexual, impedindo que a adolescência seja um período saudável.
Falta de acesso e abortos
Sobre como a falta de acesso a contraceptivos e educação sexual contribuem para o aumento do número de abortos, a sexóloga menciona que a família e a escola são importantes na transmissão de informações e orientações, assim a educação em sexualidade se torna necessária e transformadora, tanto para os adolescentes quanto para seu meio social.
Agora em relação aos riscos de saúde associados ao aborto ocorrido em condições inseguras, ela ressalta que as complicações do aborto clandestino incluem perfuração do útero, retenção de restos de placenta, infecção uterina, o que acarreta graves consequências à sua saúde física e psicológica e à própria vida.
Perfil do estuprador
Christiane afirma que de acordo com a psiquiatria o estupro não é um ato sexual, mas sim um ataque. “A mulher é objetificada na mente do abusador e há uma questão de poder e controle do corpo do outro e do prazer sem consentimento”.
Sobre os fatores sociais e psicológicos mais comuns entre estupradores, ela confessa que alguns especialistas são taxativos ao dizer que o estuprador (de qualquer tipo) não é necessariamente um criminoso com problemas psicológicos.
Segundo Miguel Chalub, professor de psiquiatria da UERJ, existem muitos estupradores com transtorno de personalidade, que têm anomalia na formação da personalidade, principalmente na parte sexual. São inseguros, incapazes de conquistar mulheres e acham que o desempenho sexual é ruim. Só conseguem ter sexo à força, nunca em uma relação de igualdade. “Geralmente esses casos tem relação com questões de ordem sexual”, diz.
À respeito do típico específico de abusador, ela afirma que existem os pedófilos, (pessoa que possui um transtorno mental de ordem sexual), que são somente 10% dos casos de abusos e os abusadores ocasionais, que se aproveitam da situação para violentar crianças e adolescentes.
Sobre mitos mais comuns do perfil de abusador é de que são violentos e agressivos. Na verdade, a maioria dos abusadores são pessoas consideradas idôneas e distintas, acima de qualquer suspeita. “São manipuladoras e constroem esse perfil justamente como forma de proteção. São envolventes, divertidas e disponíveis, principalmente em relação ao cuidado de crianças. A sociedade contribui por meio do machismo estrutural, da misoginia e da desigualdade de gênero”.
Proposta
Segundo a mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC e ativista da Frente Pela Legalização do Aborto da Baixada Santista, Mel Bleil Gallo, o projeto é inconstitucional e trata-se de uma cortina de fumaça eleitoreira proposta por Cavalcante e com apoio do presidente Arthur Lira, em ano eleitoral.
“Vemos que essa proposta é uma estratégia eleitoreira, política de desviar o debate de outras questões que estão em tramitação agora, além de uma tentativa de desgastar o governo federal jogando para uma plateia majoritariamente evangélica e conservadora”.
Saúde pública
Sobre os riscos potenciais de saúde pública caso essa lei seja aprovada, ela aborda que, ao invés de garantir uma política nacional de saúde integral das mulheres e meninas, o projeto estaria estimulando a realização de procedimentos inseguros, clandestinos, feitos sem rede de apoio qualificada. Desse modo, penalizando e sentenciando a punições penais justamente as mais vulneráveis.
Ela explica que os problemas de saúde pública se encaixam com questões sociais, porque a maioria das pessoas, que são criminalizadas, segundo estudos feitos pelas Defensorias Públicas de SP e RJ são mulheres negras, pobres, jovens, as que têm menos acesso à informação e métodos contraceptivos de qualidade são as que mais sofrem nesse momento da gravidez não planejada.
“Isso é ainda pior no caso das violências sexuais que resultam em gravidez, porque você está revitimizando essas pessoas ao fazer com que depois de uma violência sexual, elas ainda sejam agredidas pelo sistema de saúde e profissionais que se negam a garantir o direito ao aborto”.
Segundo a ativista, a estratégia tem sido mobilizar pessoas nas ruas, fazer rodas de conversas e fazer debates. “Para quem quiser realizar algum debate, atividade, oficina, que entre em contato com a gente pelas nossas páginas nas redes sociais, para que a gente possa participar e construir conjuntamente, vai ser um prazer”. Contato pelo Instagram @abortolegalbs e Facebook Frente Pela Legalização do Aborto da Baixada Santista
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