Pesquisadores da Universidade Santa Cecília (Unisanta) realizaram uma investigação inédita que revelou a presença de compostos farmacologicamente ativos e até cocaína em tecidos de peixes capturados na costa do estado de São Paulo.
Sendo assim, o estudo foi publicado na revista científica internacional Regional Studies in Marine Science, do grupo Elsevier — com fator de impacto 2.1.
Por essa razão, representa um alerta sobre a contaminação de organismos marinhos por substâncias químicas que chegam ao ambiente por meio do esgoto doméstico.
Isso ocorre sem qualquer previsão de monitoramento na legislação brasileira.
Assim, a pesquisa analisou o fígado e o músculo de cinco espécies marinhas amplamente consumidas pela população: Cathorops spixii (bagre-amarelo), Genidens genidens (bagre-marinho), Bagre marinus (bagre-bandeira), Larimus breviceps (oveva) e Pellona harroweri (sardinha).
Desse modo, houve a deteccção de cinco compostos ativos entre os doze analisados.
Portanto, foram eles: cafeína, paracetamol (acetaminofeno), furosemida (um diurético) e benzoilecgonina (metabólito da cocaína) e a própria cocaína.
Todas substâncias com potencial farmacológico ativo e implicações tanto ambientais quanto para a saúde humana.

Pesquisadores da Unisanta participaram do estudo com peixes coletados no litoral paulista. Foto: Divulgação/Unisanta
Trabalho conjunto
O trabalho, desenvolvido por docentes dos programas de pós-graduação stricto sensu da Unisanta, envolveu pesquisadores dos Laboratórios de Pesquisa em Produtos Naturais (LPPNat) e de Biologia de Organismos Marinhos e Costeiros (Labomac).
A professora Luciana Lopes Guimarães, doutora em Ciência e Tecnologia Ambiental e mestre em Ecologia e Auditoria Ambiental comentou sobre estudos de cocaína presente em águas de Santos e Guarujá.
“Estudos anteriores publicados pelo nosso grupo de pesquisa (LPPNat) demonstraram a presença de diferentes fármacos, cocaína e benzoilecgonina (metabólito da cocaína) em águas coletadas em diferentes localizações nos municípios de Santos e Guarujá. Considerando a exposição contínua de organismos aquáticos a essas substâncias, havia expectativa de encontrar a presença destas em peixes, considerando também as características físico-químicas destas substâncias que favorecem a sua absorção e bioacumulação (acúmulo) nos tecidos”, destaca a professora.
Dessa forma, a espécie Cathorops spixii (bagre-amarelo) apresentou os maiores níveis destes compostos, tanto no fígado quanto no músculo.
A presença de paracetamol ocorreu exclusivamente no músculo dessa espécie.
Cabe destacar que o músculo representa a parte comumente consumida. Já a cafeína apresentou concentrações mais elevadas em Bagre marinus do que nas demais espécies. Portanto, o que os autores relacionam a registros anteriores de altos níveis da substância na região costeira analisada.
Da mesma forma, outro dado relevante do estudo é a discrepância observada entre os níveis de cocaína e benzoilecgonina, especialmente nas espécies C. spixii e L. breviceps.
A diferença pode ser explicada por aspectos físico-químicos distintos entre os compostos.
Assim, conferindo à cocaína melhor absorção e acúmulo em relação à benzoilecgonina.
Sendo este último um produto gerado pelo metabolismo humano após o consumo de cocaína.
Coleta de amostras
Os peixes analisados tiveram coletas em dois pontos da Baixada Santista, Praia do José Menino, em Santos, e Praia do Perequê, em Guarujá.
São áreas de forte urbanização, onde a pesca artesanal é uma atividade tradicional.
Três das espécies (Genidens genidens, Cathorops spixii e Larimus breviceps) foram obtidas no mesmo dia da pescaria.
Elas foram doadas por pescadores locais que realizavam arrasto de praia em Santos. As outras duas espécies (Bagre marinus e Pellona harroweri) foram coletadas nas proximidades da Ilha do Perequê, em Guarujá.
“As três espécies capturadas em Santos estão amplamente distribuídas ao longo da costa brasileira, são frequentemente comercializadas em mercados de peixes e compõem o que chamamos de ‘mistura’ — um conjunto de espécies de menor valor comercial, mas amplamente consumido pela população”, explica o artigo.
O transporte das amostras ocorreu em caixas refrigeradas a 4ºC até o laboratório e processadas.
Após identificação das espécies e realização de medidas morfométricas — como comprimento total e massa corporal —, os peixes foram dissecados.
Sendo assim, o processo foi realizado para extração de amostras de músculo (região da nadadeira dorsal) e fígado.
Análise cromatografia
Os tecidos foram então submetidos à análise por cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massas (LC-MS/MS).

Substâncias farmacológicas e cocaína foram detectadas em cinco espécies de peixes. Foto: Divulgação/Unisanta
Desse modo, trata-se de técnica de alta precisão capaz de identificar compostos em baixíssimas concentrações.
Segundo os pesquisadores, o estudo preenche uma importante lacuna. “É a primeira vez que são relatadas as presenças de acetaminofeno e cafeína nestas espécies de peixes capturadas na costa brasileira. Além disso, é a primeira vez que quatro fármacos são identificados nos tecidos da espécie Cathorops spixii. A motivação do grupo foi justamente a ausência de estudos anteriores sobre a presença de fármacos e drogas ilícitas em peixes marinhos do estado de São Paulo, e os resultados obtidos tornam-se ainda mais relevantes diante do potencial de exposição humana secundária a essas substâncias, por meio do consumo de pescados contaminados.
“A presença de benzoilecgonina é um indicativo claro do consumo humano de cocaína, com posterior excreção da substância por meio da urina. A provável origem de todos os compostos detectados é a descarga irregular de esgoto doméstico, agravada pela ausência de tratamento eficiente, especialmente para a remoção de substâncias bioativas, que acabam sendo lançadas no mar por meio dos emissários submarinos”, aponta a pesquisa.
Avanço de estudos
Embora ainda não existam dados conclusivos sobre os riscos à saúde humana, os autores defendem o avanço de estudos nessa área: “Do ponto de vista da toxicologia humana, ainda são necessários novos trabalhos que investiguem os efeitos da exposição crônica a essas substâncias por meio da alimentação, mesmo em concentrações muito baixas”.
Contudo, a preocupação é crescente. “É importante considerar que estamos lidando com a ingestão contínua de substâncias farmacologicamente ativas através de um alimento amplamente consumido. Esperamos que este trabalho marque o início de novos estudos que abordem com mais profundidade o impacto da combinação destas substâncias sobre os organismos marinhos e sobre a saúde humana”, afirma a Profa. Luciana.
Dessa forma, diante da relevância dos resultados, os pesquisadores já planejam expandir os estudos para outras áreas do litoral brasileiro.
Com isso, reforçarão a importância do monitoramento ambiental e da ampliação do debate sobre o controle de poluentes emergentes, como fármacos e drogas ilícitas, nos ambientes costeiros.
Além disso, o estudo contou com a colaboração internacional do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR/CIMAR – Portugal).
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