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11 DE JUNHO DE 2021

Demarchi: textos escritos no calor da hora

Por: Da Redação

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  I

Siri na lata (Santos, Realejo Edições, 2015), livro premiado e selecionado em 2014 para publicação pelo Programa de Apoio Cultural da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Santos, reúne crônicas publicadas pelo poeta e crítico literário Ademir Demarchi, de 2008 a 2015, em revistas e jornais, principalmente no Diário do Norte do Paraná, de Maringá, além de resenhas e textos para orelhas e prefácios de outras obras e uma percuciente entrevista dada pelo autor à jornalista e pesquisadora Márcia Costa, publicada no Jornal da Orla, de Santos, em 17/11/2008.
O título, expressão muito popular na região litorânea que tenta refletir a situação de desespero em que fica um siri ou um caranguejo preso numa lata antes de ir para a panela, procura refletir a tensão de um trabalho que foi escrito no “calor da hora” diante da obrigatoriedade de produzir semanalmente um texto de cultura que prendesse a atenção do leitor de jornais diários. Como se sabe, este tipo de leitor – cada vez mais raro nestes tempos digitais – geralmente está mais preocupado com as coisas do dia a dia e com aquilo que pode prejudicar a sua vida, em função da parlapatice que tem marcado a ação dos homens públicos. São textos em que autor experimenta a crônica, a ficção, a prosa poética, a resenha e até faz comentários de fundo político.
Desses textos, surpreende a vasta cultura do autor e a elasticidade de suas preferências como leitor, pois não só percorre com facilidade as obras de autores clássicos mundiais como se demora em analisar obras de poetas, romancistas e contistas pouco difundidos ou de renome apenas regional, o que lhe dá a autoridade de ser um dos maiores conhecedores da produção literária praticada nas últimas três décadas no Brasil.

II

Na primeira parte do livro, Siri nas nuvens, a mais lírica, surpreende aquela crônica em que o cronista reclama que, até então (o texto é de 2010), o Brasil não deixava Barbosa morrer em paz.  Moacir Barbosa Nascimento (1921-2000) foi aquele infeliz goleiro que, na Copa do Mundo de 1950, não segurou um chute do uruguaio Alcides Ghiggia (1926-2015) na final disputada no Maracanã. A seleção brasileira perdeu quando lhe bastava apenas um empate. E Barbosa morreu esquecido, como um mocho nas solidões, aos 79 anos, em 2000, e foi enterrado no cemitério da Grande Planície em Praia Grande, onde vivera os seus anos de ostracismo.
Mas, em 2010, por falta de pagamento, a administração do cemitério queria se livrar dos ossos do ex-goleiro porque pretendia aproveitar o seu túmulo para enterrar outras pessoas. Ou seja, desta crônica, pode-se concluir que um lance fortuito pode tanto consagrar como comprometer não só a vida de alguém para sempre como até o seu futuro pós-morte. “Pelo jeito tem gente lá (na Praia Grande), vivinha, que ainda não engoliu a Copa de 50”, lamenta o cronista, com ironia, na última linha de sua crônica.
Na segunda parte da obra, que dá título ao livro, o cronista trata de ir mais fundo ao analisar, na crônica “A idiocracia galopante que nos governa”, o cenário político brasileiro de há nove/dez anos, para antecipar com precisão a situação desesperadora em que vive o país real hoje, resultado de uma escolha desastrada por uma população facilmente manipulável por demagogos. E cita o filme Idiocracy, dirigido em 2006 por Mike Judge, em que aparece um presidente norte-americano, que é também “ator de filmes pornôs, truculento e burro, mas aplaudido pela massa de ignorantes que baba com admirada estupidez diante de gente assim que os representa, quer por se parecerem ou por estarem em anúncios na tevê”.
Na mesma crônica, lembra que, de 1970 para cá, dos “90 milhões em ação…para frente Brasil, salve a Seleção”, passamos para os 200 milhões de habitantes de hoje. “Ao longo desse tempo, temos assistido à ascensão social e econômica de uma infinidade de brasileiros que estavam na miséria (…)”, reconhece. E conclui: “Mas os índices não mentem: o país é formado por 7% de analfabetos absolutos e 68% de analfabetos funcionais (aqueles alfabetizados, no entanto, incapazes de ler um livro que não seja do Paulo Coelho, e olhe lá). Restam 25% da popul ação, apenas, de alfabetizados, mas que praticamente não leem, não vivenciam a cultura complexa que o país acumula. Os que o fazem talvez sejam uns 5%…”.
Em outras palavras: o cronista parece querer dizer que nunca os idiotas mandaram tanto, confirmando uma previsão do cronista Nelson Rodrigues (1912-1980) segundo a qual eles “iriam tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade, pois são muitos”.

III

Na quinta parte do livro, Siri à caiçara, Demarchi reúne resenhas que escreveu para assinalar a publicação de obras escritas por autores santistas ou que estão ligados à Baixada Santista, como Marcelo Ariel, Alexandre Martins, Carlos Gama, Edson Amâncio, Gilberto Mendes (1922-2016), Luiz Cancello, Madô Martins, Flávio Viegas Amoreira, Manoel Herzog, Regina Alonso, José Macia, o Pepe, antigo ponta-esquerda do Santos FC, e Patrícia Galvão (1910-1962), a Pagu, que se tornou musa do movimento modernista, embora não tenha participado da Semana de Arte Moderna de 1922, além de dois textos que dedicou a romances deste resenhista.
Nas demais seções do livro, Siri na estante, Siri na tela, Siri no corpo e Siri no prato, o leitor ainda encontrará textos diversos dedicados a outras obras e filmes e, por fim, à atriz Maria Alice Vergueiro (1935-2020), que, aos 80 anos, ainda excursionava com uma nova peça de teatro em que dirigia e protagonizava uma velha senhora, “numa metáfora de si mesma que, à espera da morte, morre e a peça se transforma em seu velório”. Por aqui, pela qualidade do texto e pela sutileza das observações do autor, vê-se que o leitor, por certo, só terá a acrescentar em sua cultura se v ier a conhecer este livro.

  IV

Ademir Demarchi, nascido em Maringá, em 1960, mas estabelecido em Santos e São Vicente desde 1993, foi editor das revistas de poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, de 2000 a 2017, e Babel Poética, de 2011 a 2013, que foi premiada em primeiro lugar entre 170 projetos no Programa Cultura e Pensamento de 2009/2010 do Ministério da Cultura. Edita o selo editorial de livros artesanais Sereia Ca(n)tadora, com 31 títulos publicados entre 2010 e 2018.
É graduado em Letras na área de Francês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e mestre em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob a orientação de Raul Antelo, um dos maiores especialistas acadêmicos na área da Antropofagia. É doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) na mesma área.
Publicou Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Edições, 2007); Passeios na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007: Lima, Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012);  Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos, Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); Pirão de sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos (Santos, Realejo Edições, 2012); O amor é lindo (São Paulo, Editora Patuá, 2016); Gambiarra: uma pinguela para o futuro do pretérito (Bragança Paulista, Urutau, 2018); Espantalhos, ensaios (Florianópolis, Editora Nave, 2017) e Contra poéticas (Florianópolis, Nave Editora, 2020), entre outros.
Com numerosos poemas, artigos e ensaios publicados em livros e revistas e em sites da Internet, é colunista há 13 anos do jornal Diário do Norte do Paraná, de Maringá, e desde 2014 dos jornais impressos RelevO, de Curitiba, e O Duque, de Maringá. Organizou as antologias Passagens – antologia de poetas contemporâneos do Paraná (Curitiba, Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 2002) e 101 poetas – antologia de experiências de escritas poéticas no Paraná do século XIX ao XX, 2 vols. (Curitiba, Biblioteca Pública do Paraná, 2014). < /span>

Siri na lata, de Ademir Demarchi. Santos, Realejo Edições, 395 págs., R$ 40,00, 2015. E-mail: [email protected]
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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da ma drugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.

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