Nelson Urt: do jornalismo à ficção | Boqnews
Foto: Divulgação Nelson Urt

Opiniões

08 DE MAIO DE 2019

Nelson Urt: do jornalismo à ficção

Por: Da Redação

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I

Depois de uma carreira de três décadas em grandes veículos de comunicação de São Paulo, como O Estado de S.Paulo, revista Placar (Editora Abril), Diário Popular e ESPN Brasil, entre outros, o jornalista Nelson Urt, 65 anos, voltou em 2004 para a sua Ladário natal, antigo distrito e hoje cidade vizinha a Corumbá, no Pantanal do Estado do Mato Grosso do Sul, onde continuou a exercer sua profissão nas redações do Diário Corumbaense e do Correio de Corumbá e como autônomo, além de dedicar-se aos estudos acadêmicos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
A par disso, em fevereiro de 2019, decidiu criar uma editora, a Maria Preta Cartonera, pela qual acaba de lançar Amor e Morte em Tempos de Chumbo, que reúne um conto inédito e crônicas, além de poesias e artigos escritos ao longo dos últimos dez anos. Juntamente com o livro de Urt, a Maria Preta Cartonera lançou Paixão e Morte no Bordel, com contos dos jornalistas e historiadores Luiz Fernando Licetti, Silas de Almeida e Nelson Urt.
O mergulho de Urt na ficção, porém, não deixa de ser um retrato bem acabado de uma realidade vivida por jornalistas e outros intelectuais, de modo geral, na cidade de São Paulo nos anos 60 e 70, durante os tempos de chumbo provocados pelo regime militar (1964-1985). Com um texto enxuto e pacientemente elaborado de quem dedicou os seus melhores anos à escrita de reportagens na área esportiva, o jornalista, agora ficcionista, reconstitui no conto que dá título ao livro as peripécias de Marcus, uma espécie de alter ego, fotógrafo do Diário da Noite, periódico do empres ário Assis Chateaubriand (1892-1968), dono do conglomerado Diários Associados, magnata das comunicações entre o final de 1930 e o começo da década de 1960.
À época da história recuperada por Urt, Chateaubriand, advogado e membro da Academia Brasileira de Letras, já havia desaparecido e seu império jornalístico começava a desabar para dar lugar a outro, o do empresário Roberto Marinho (1904-2003), dono do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e da Rede Globo de Televisão. Nas ruas, o que respirava eram tempos de angústia, com perseguição aos inimigos do regime, como o jornalista Juca, chefe de reportagem da revista Placar, formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), que fora detido, pois acusado de per tencer a um movimento de esquerda. Juca, o amigo de Marcus, por pouco não teria tido o destino do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), diretor de jornalismo da TV Cultura, emissora estatal do governo de São Paulo, que seria torturado até à morte nas dependências do órgão de repressão.
“Outros suspeitos de subversão sentiram na pele os horrores dos métodos dos torturadores, que aplicavam choque elétrico, queimavam o corpo com ponta de cigarro, davam bofetões no rosto e expunham a vítima aos limites da resistência afogando-a em baldes d´água”, descreve o autor, reconstituindo os passos do fotógrafo Marcus, agora também preocupado com a sua amiga Rosana, igualmente jornalista e perseguida política, com quem costumava dançar na pista do Bar Avenida, no centro da capital paulista, ao som de blues e jazz. Descendente de ucranianos, RosaYushchenko, porém, teria melhor sorte: conseguiria embarcar para Londres, onde reconstituiria a vida longe de Marcus, mas com uma lembrança inesquecível e palpável, o filho que nasceria daquela relação fortuita.

II

Entre as crônicas, uma que se destaca é “Na solidão das ruas, o Natal de Rosinha”, em que Urt reconstitui a vida de uma moradora de rua, que sobrevive do lixo que sobra da sociedade de consumo, o que mostra a preocupação do autor com os excluídos. Aliás, o próprio autor confessa sua fixação “em perseguir incansavelmente a contestação, a controvérsia e a reconstrução da história, tentando quebrar paradigmas, tabus e preconceitos”, como observa na crônica que encerra o livro, “Dez anos de jornalismo, história e literatura”. Por isso, para definir o autor e suas peças literárias, nada melhor que as suas próprias palavras: “(…) Busco publicar aquilo que eleve a alma e defenda a dignidade do ser humano, e que possa contribuir para um mundo melhor e mais justo”.
Essa preocupação se vê no olhar terno e, ao mesmo tempo, revoltado com que o jornalista e agora ficcionista dirige aos poucos indígenas que não foram dizimados pela civilização ocidental e ainda habitam as terras do Pantanal, dos quais procura recuperar suas histórias. “Fico feliz quando converso com Dona Dalva, o cacique Severo e outros guatós que, vindos da aldeia Uberaba, ancoram o barco no porto de Corumbá”, confessa, lembrando ainda que os bairros negros de Corumbá, como Saroba, ainda escondem verdades sobre a escravidão na região, mas que “aos poucos vão saindo da escuridão e ganhando as páginas dos livros&rd quo;, graças à leitura das poesias de Lobivar Matos (1915-1947) e de Benedito C. G. Lima (1949), “poeta da resistência”, jornalista, historiador, trovador e fundador do movimento negro em Corumbá, autores que hoje são objeto de estudo do jornalista/acadêmico.

III

Criada por Nelson Urt em Ladário, a Maria Preta Cartonera Editora foi inspirada nos projetos de livros artesanais com capa de papelão (daí a origem castelhana do nome cartón), criados a partir de 2002 como uma saída para a grave crise editorial na Argentina e que se propagaram mundialmente como literatura underground (ou subterrânea), especialmente na Espanha, México, Bolívia, Chile e Peru.
Segundo o material de divulgação preparado por Jota Etcheverria, da Navepress, em Mato Grosso do Sul, o maior representante desse tipo de literatura autônoma, que sobrevive fora dos grandes mercados livreiros, é Douglas Diegues, autor de poesias escritas em “portunhol selvagem” e criador de Yiyi Jabo Cartonera, em Ponta Porã-MS. No Brasil, segundo Etcheverria, a Vento Norte Cartonero, de Santa Maria-RS, é uma das referências nesta linha literária que tem por objetivo despertar o gosto pelo livro e pela leitura entre as grandes massas, facilitando o acesso às obras literárias por meio de oficinas e rodas de conversa nas escolas.
Como conta Urt na apresentação que fez para o seu livro, a fonte inspiradora para o nome da editora artesanal foi uma catadora de lixo que vive nas ruas de Corumbá com um lenço branco na cabeça, sem documento, sem nome e sobrenome. É conhecida como Maria Preta. Ao tentar entrevistá-la, Urt diz que recebeu apenas um sorriso doce e silencioso, como o de uma criança, que nunca mais conseguiu esquecer. Diz que, certa vez, o dono de uma empresa de lixo reciclável lhe contou que nunca havia comprado nada de Maria Preta, mesmo porque o que ela colhe não seria para vender. Lembra ainda que nunca os funcionários especializados em população de rua conseguiram at raí-la para passar uma noite no centro de acolhimento e que, por isso, seu cadastro continua incompleto.
Segundo Urt, Maria Preta gosta mesmo é da solidão das ruas, “onde seu corpo curvado espalha a ternura dos que nada devem, nada temem, nada perdem”. E conclui: “É o eterno caminhar para o nada, que podemos interpretar como um caminho espiritual. Ou pura poesia”. Por isso, o jornalista resolveu dar o nome pelo qual aquela figura popular é conhecida à editora cartonera que fundou, que segue o exemplo da congênere Dulcineia Catadora, criada em 2007 em São Paulo e que funciona dentro de uma cooperativa de reciclagem, aliando a literatura à ação social, pois possibilita aos próprios catadores de lixo a elaboração de seus livros. A capa do livro é sempre moldada com sobras de caixas de papelão atirados ao lixo. Os livros da Maria Preta Cartonera estão à venda por R$ 18 aos sábados, das 9 às 11 horas, dentro do projeto Passa na Praça que a Arte te Abraça, na Praça Independência, em Corumbá, mas podem ser obtidos também por via postal.
Em Santos-SP, em 2012, por iniciativa do poeta Ademir Demarchi, editor da conceituada Revista Babel, foi lançada a Sereia Ca(n)tadora, que já editou vários livros, como A morte de Herberto Helder e outros poemas, de Marcelo Ariel, Hi-Kretos, de Paulo de Toledo, Olho por olho, de Regina Alonso, e O amor é lindo, do próprio Demarchi, entre outros, todos feitos de forma artesanal, com capas pintadas uma a uma em papelão reciclado.

IV

Nelson Urt cursou Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Casper Libero, em São Paulo, e graduou-se em História na UFMS, campus Pantanal, em Corumbá. Em 2018, começou a fazer o mestrado de Estudos Fronteiriços da UFMS, com um projeto de pesquisa sobre os dois livros e influências deixados pelo poeta corumbaense Lobivar Matos.
Urt é ainda autor do livro Estação das Mariposas (e-book no site da Amazon) e redator do blog Nave Pantanal (nelsonurt.blogspot.com.br), que, desde 2008, reúne crônicas e notas de seu dia a dia no jornalismo. Desenhista e letrista de origem, escreve e ilustra manualmente títulos usando guache e nanquim.

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