As metáforas orgânicas que permeiam a totalidade de nossas discussões atuais desses assuntos, especialmente acerca dos tumultos – a noção de uma sociedade enferma, cujos sintomas são os tumultos, assim como a febre é o sintoma da doença – só podem, por fim, promover a violência. Assim, o debate entre os que propõem reformas não violentas começa a soar, sinistramente, como a discussão entre dois médicos que debatem as vantagens relativas da intervenção cirúrgica ou de tratamento clínico do paciente. Quanto mais doente supõe-se estar o paciente, mais é provável que o cirurgião tenha a última palavra.
A frase acima foi escrita entre 1968 e 1969 e consta do livro Sobre a Violência da filósofa Hannah Arendt, uma das mais brilhantes pensadoras políticas do século passado. Seu pensamento baseia-se nos acontecimentos da ocasião, como a movimentação estudantil na Europa, e os EUA e a guerra do Vietnã.
Após quase meio século, seu pensamento permanece atual. Vivemos em uma sociedade enferma, onde a violência está presente e crescente. E o pior, metaforicamente falando, a intervenção cirúrgica está sendo cada vez mais adotada. Espera-se a situação explodir para efetivamente as autoridades tentarem encontrar uma solução. É isso o que ocorre no mundo, em países como a Venezuela e a Ucrânia, mas também no Brasil, onde a cada dia somos bombardeados com casos de violência escabrosos. Filhos que matam pais, latrocínios em profusão, pessoas vítimas de balas perdidas, a violência no trânsito, roubos e crimes. Estamos no fundo do poço.
Vivemos na era do consumo exacerbado onde o ter é o verbo mais adotado. E não basta ter só dinheiro, mas poder e ostentação.
O cenário preocupa ainda mais, pois estamos às vésperas de uma Copa do Mundo e fatos negativos se tornam cada vez mais rotineiros, denegrindo nossa imagem no exterior. Não bastasse, a mídia também tem sua parcela de responsabilidade em explorar situações de forma extrema dando mais detalhes e espaço para assuntos com enfoques exagerados e parciais, desrespeitando o bom e velho jornalismo.
A verdade também é que a insegurança decorre da nossa legislação obsoleta, permissiva, caolha e frágil, em razão de tantas brechas, facilitando os abusos e crimes contra a sociedade e o patrimônio. E a cada dia, um fato novo ocorre sem que algo mude. A impunidade impera.
Não bastasse, nosso sistema prisional é caótico e se tornou uma universidade do crime. Além disso, a ausência do Estado em regiões periféricas é a síntese absoluta do espaço para surgir um poder paralelo que alimenta a violência e o temor a ponto deste grupo nada ter a temer, capaz de agir com a maior naturalidade ao praticar roubos, por exemplo, contra profissionais, como bombeiros e jornalistas, e até moradores que acabaram de perder seus pertences, como ocorrera recentemente em um incêndio suspeito na favela México 70, em São Vicente.
Por fim, retomo ao pensamento de Hannah Arendt que discordava da máxima do ditador Mao Tsé-tung, que afirmava que o poder se origina do cano de uma arma, mas, em vez disso, que poder e violência são opostos; onde um reina absoluto, o outro está ausente. O mais fiel retrato do que ocorre hoje no Brasil.
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