Fui passageiro de bondes elétricos, quando eles ainda eram o principal meio de transporte coletivo de Santos. Além de usuário, também tinha uma ligação afetiva com eles, pois vários parentes trabalhavam na SMTC – Serviço Municipal de Transportes Coletivos. Meu pai trabalhava na oficina de motores elétricos e meu avô era fiscal de bondes, além de tios.
A cidade se orgulhava de ter uma das melhores redes de bondes elétricos do Brasil, e os veículos, abertos ou fechados, desfilavam pelas ruas da cidade, entre abrigos metálicos antigos e modernistas, alguns dos quais ainda preservados, na orla e na Av. Ana Costa.
Havia poucos carros nas ruas a disputar espaço com eles, e a vida era tranquila nas vias locais, que viravam campos de futebol de “caixote” ou cenários para brincadeiras de “pega-pega”, “polícia e ladrão” e “bandido e mocinho”, num tempo em que a gente ainda não sabia que as aparências enganavam.
Lembro dos cobradores e seus apitos, que avisavam o motorneiro para prosseguir; das cédulas de cruzeiros dobradas entre seus dedos, para abreviar a cobrança…
Meu pai contava que, ainda solteiro, pegava o bonde na Vila Mathias, ia até a Av. Pedro Lessa, onde saltava, para almoçar em casa. Praticamente engolia a comida.
Por quê? Para tomar o mesmo veículo que, após contornar a Praça Nossa Senhora Aparecida retomava o caminho do Centro. Para facilitar, o motorneiro tocava o sinal característico, que alertava meu pai sobre sua aproximação. Meu pai efetivamente “pegava o bonde andando”, pulando no estribo e agarrando no balaustre: “aventura” máxima dos jovens de então.
De repente, começaram a dizer que aquilo era coisa do passado…
A pressão da indústria automobilística, aliada a acidentes por derrapagem de veículos sobre trilhos e imprudências de pedestres, levaram à progressiva substituição dos bondes por ônibus movidos a diesel. Consciência ambiental ainda não estava em voga…
Então, em 1971, o derradeiro bonde foi recolhido definitivamente à oficina, sepultando quase um século de história.
A maioria virou sucata, salvo alguns, que foram distribuídos por escolas municipais, virando equipamentos de lazer.
Na década de 1980, um exemplar voltou a circular, por curto tempo, na orla. Porém, só no final dos anos de 1990 essa volta ocorreu de forma sustentável e contextualizada, não apenas afinada com a conscientização ambiental, mas também com a proposta de revitalização do Centro Histórico de Santos.
A ideia era fazer um museu vivo de bondes elétricos, aliando turismo, lazer, cultura e resgate da história e identidade afetiva do santista!
Exemplares do Brasil, Portugal e Itália foram progressivamente integrando seu acervo, que brevemente será agregado de um bonde japonês. E todos circulam por locais onde Santos nasceu e viveu o apogeu do ciclo cafeeiro, do qual herdou estrada de ferro, porto organizado e saneamento básico que lhe deram bases para expansão urbana, com qualidade de vida.
Agora, materializando uma ideia luminosa, que aguça todos os sentidos, anunciam que o bonde italiano será adaptado para tornar-se um ambiente móvel de degustação de frutos de rubiáceas: o “Bonde do Café” ou, simplesmente, o “BondeCafé”.
Saborear um “expresso” feito com café brasileiro, por jovens estudantes “baristas”, num bonde italiano, apreciando vistas e exposições itinerantes, por natureza e movimento!
Quem sabe, no futuro, virão versões gastronômicas, performáticas ou temáticas, que também se associarão ao já tradicional “Carnabonde”…
Parabéns à Prefeitura de Santos e ao Museu do Café pela genial, aromática e saborosa iniciativa! Porque atrás do bonde elétrico, história viva, “só não vai quem já morreu”!
* Adilson Luiz Gonçalves
Escritor, Engenheiro e Professor Universitário (UNISANTA)
Membro da Academia Santista de Letras