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17 DE DEZEMBRO DE 2010

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Mãe de todos

O filósofo Jean-Paul Sartre já dizia que o homem é produto do meio em que vive. Apesar de antigo, o pensamento do francês ajuda a entender porque boa parte da violência, da prostituição e do abandono escolar surge principalmente em comunidades mais carentes, onde a perspectiva de vida não é das mais elevadas. Mas, em […]

Por: Da Redação

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O filósofo Jean-Paul Sartre já dizia que o homem é produto do meio em que vive. Apesar de antigo, o pensamento do francês ajuda a entender porque boa parte da violência, da prostituição e do abandono escolar surge principalmente em comunidades mais carentes, onde a perspectiva de vida não é das mais elevadas.


Mas, em cada meio, há um “micromeio” diferente, cada qual com sua peculiaridade e uma forma de pensar no mundo. E mesmo perante às dificuldades e à proximidade que se esteja de exemplos nada pródigos, há quem consiga blindar seu “micromeio” e mostrar, como canta Chico Buarque, que o mundo pode ver “uma flor brotar do impossível chão”.


Andrea Alves Nogueira é esse “quem”, embora pudesse muito bem estar sob os efeitos do “grande meio” onde vive. O ex-companheiro se envolveu com drogas e acabou deixando-a sozinha – ou quase. Sua residência fica há uma quadra do cais, na Travessa Dona Adelina. Para quem vai em direção à área portuária, sua porta é a terceira da direita para a esquerda. Não há maçaneta e a melhor campainha é o velho “toc-toc”.


Quando ela é aberta pela pequena Raíssa, vê-se um corredor escuro e úmido, com uma bicicleta à frente das escadas e rachaduras nas paredes laterais. O primeiro pensamento é: “como se consegue criar 12 – sim, 12 – crianças aqui?”.


Mas Andrea consegue. Raissa é uma das mais novas da família que a carioca de Petrópolis, de 50 anos, tem em seu aposento, alugado a salgados R$ 250,00. Mais salgados ainda quando se sabe que Andrea está desempregada desde o fim do Cine Fugitivo, conhecido ponto da antiga e movimentada área portuária, onde trabalhava como faxineira.


A carioca, porém, nem sotaque tem mais. Está há mais de 30 anos em Santos, para onde veio após sucessivas mudanças. “A gente sempre quer mudar de vida, né? Então primeiro fui para o Rio de Janeiro. Não deu certo e falavam muito bem de São Paulo. Fui para lá e acabei parando em Santos”, conta Andrea, que até pouco tempo nem registrada em cartório era.


“Ela nasceu em uma área rural em Petrópolis, e nesses lugares não há muita preocupação em se registrar alguém. Então, fomos eu e mais um senhor que trabalha conosco depor a um juiz para que conseguíssemos o registro dela  em Santos”, relembra Antônio Garcia, um dos seis responsáveis (sendo cinco confrades e uma consócia) da Sociedade São Vicente de Paulo que auxiliam, desde o começo da década, Andrea e suas crianças no difícil dia-a-dia.



Apoio


Andrea e a entidade se “conheceram” em 2001, quando a história da carioca chegou à Conferência (como é conhecido o grupo de pessoas vinculadas à São Vicente de Paulo que se propõem a fazer o auxílio aos pobres diretamente em suas casas). O objetivo dos “vicentinos” é o da promoção da família. “O objetivo é trabalhar para que elas consigam andar com as próprias pernas, por assim dizer”, explica Antônio.


O trabalho com Andrea e seus “filhos” acabou indo além do previsto. “O caso dela é diferente. O carinho com o qual ela acaba recebendo crianças que foram literalmente abandonadas, e mesmo as que são filhas de presidiários e até prostitutas, é algo que nos comoveu a seguir com essa atenção. Só vamos considerar que essa família estará promovida quando todos estiverem coma e educação concluída, empregados e bem encaminhados”, conta o confrade, “vicentino” há 28 anos.


Nem todos são filhos dela. Na verdade, nenhum deles, do ponto de vista sanguíneo. Os 12 são todos adotados, sendo que muitos, como a pequena Nataly, vieram parar, literalmente, na porta de sua casa. Janderson e Igor, ambos com 12 anos, são os mais velhos, enquanto Ana Laís, de apenas um mês de vida, dorme  no carrinho embalado pela mãe Solange, que se não é mais criança – tem 23 anos -, é uma das mais “antigas” moradoras da casa de dona Andrea.


A dona de casa é tímida, e até tenta explicar o porquê de, mesmo sem condições, ter recebido tanta criança. “Ah… Se batem na porta, tem como dizer não? A pessoa será sempre bem vinda!”, diz, com os olhos começando a marejar. “Eu choro muito fácil (risos)!”. Antônio, por sua vez, resume: “É que ela não quer falar, mas é o coração dela. Ela sofre ao ver outras pessoas sofrendo, como sofria quando via as crianças que ela recebeu abandonadas. Ela tem essa vocação. Não tem jeito”, destaca.


Tal vocação é mesmo procedente. As tentações do “grande meio” que é a rua podem até existir. Mas as crianças preferem mesmo é seguir no número 6A da Travessa Dona Adelina. Por quê? Solange, que já residiu em vários abrigos – e preferia fugir deles – e que há aproximadamente nove anos está com Andrea, a quem já visitava anteriormente, resume: “Aqui eu encontrei o que nunca tinha encontrado nos abrigos. Carinho, atenção e amor”.


Dificuldades


É de Solange a renda da casa – trabalha como monitora no Lar Santo Expedito. Naturalmente, é de se esperar dificuldades. A sala da casa ainda está em condições melhores, se comparada aos demais cômodos, mas ainda assim, contém várias manchas nas paredes. A cozinha, uma das áreas “favoritas” de Andrea — “É lá que fiz alguns docinhos, que vendi na quermesse do Mercado Municipal”, lembra —, por sua vez, recebeu algumas melhoras nos encanamentos -que estão à mostra.


Mas é quando se segue em direção ao único quarto da residência que a situação se complica. Devido às últimas chuvas, foi necessário colocar um plástico preto no teto, acima das camas, para proteger as crianças da infiltração de água. O cheiro de água de chuva no local é forte, mesmo com o tempo seco. “Conseguimos trazer beliches para ajudar as crianças a ficarem abrigadas, mas é um desafio”, conta Antônio.


Além disso, a casa ainda conta com despesas de água (R$ 90,00) e alimentação (algo em torno de R$ 200,00) – mesmo com o envio de cestas básicas, de 15 em 15 dias, por parte dos “vicentinos” para auxiliar Andrea. Para complicar, o “sonho” de progredir na casa acaba barrado pelo medo de que os custos aumentem por decisão do proprietário do imóvel. “O pouco que já se conseguiu aqui acabou vindo da sensibilidade dos marceneiros e serralheiros que vieram aqui e constataram as necessidades”, lembra.


Ainda assim, às vezes, quando o mês termina “no azul” no tocante à comida, Andrea ainda encontra forças para surpreender. “Um dia ela chegou toda tímida, pedindo para eu não levá-la a mal, mas que como havia sobrado um pouco da comida da cesta básica, ela fez pratos para um senhor que estava abandonado no porão de uma casa da vizinhança. Estava com medo de ter agido errado. Mas, puxa, ela tem é que ser exaltada!”, destaca o confrade. “Talvez, com um pouco mais de recursos, poderia até ser uma nova Vó Benedita. Por que não?”, acrescenta.


Próximo passo: um novo lar


Deixar a rua portuária é um dos objetivos de Andrea, mas, até agora, trata-se de um processo difícil, justamente pelo grande número de crianças. Mesmo nos morros, achar um novo local para viver é um desafio. “Afinal, é difícil convencer locatários a dar o espaço para tantas crianças, ainda mais tão pequenas e cheias de saúde (risos)”, conta Antônio Garcia, confrade da Sociedade São Vicente de Paulo. Além disso, Andrea ainda não conseguiu inscrição em nenhum programa habitacional, como o Minha Casa, Minha Vida.


A matemática é perversa e o dinheiro não sobra. Mas quem disse que as crianças ligam? Apesar das dificuldades, a animação deles é constante. Mesmo com a televisão ligada, no proveitoso começo de férias da garotada — todas estão regularmente na escola — são as bonecas de pano que fazem a alegria da criançada.


O carinho deles entre si e mesmo com os “estranhos” –  as crianças, uma a uma, fizeram questão de dar um sorriso e um abraço no repórter, e ainda o acompanharam até a saída da casa, sempre sorridentes – é prova de que o “micromeio” que Andrea proporcionou, mesmo circundada por um meio não muito aprazível, é sim capaz de produzir as flores que brotarão do impossível chão, como diz a canção de Chico Buarque, e de mostrar que fazer alguém feliz não são apenas dependentes de dinheiro.


“Você olha o sorriso dessa criança que você ajudou a criar, apesar de tudo, e pensa: tem como não querer continuar?”, indaga Andrea, novamente com lágrimas nos olhos.

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