A poesia como reflexo de um cenário de perdas | Boqnews

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27 DE FEVEREIRO DE 2023

A poesia como reflexo de um cenário de perdas

Por: Da Redação

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I

Pessoa extremamente sensível, que coloca a sobrevivência da espécie humana acima de todas as possíveis divergências étnicas ou políticas, o que a leva a lutar há anos pelo fim do domínio de Israel sobre as terras conquistadas na guerra de 1967, a poeta israelense Tal Nitzán (1961) acaba de ter publicado o seu segundo livro no Brasil, Atlântida (Belo Horizonte, Ars et Vita Editora, 2022), que reúne 40 poemas tirados de obras já publicadas, majoritariamente traduzidos pelo jornalista Moacir Amâncio, doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) daquela instituição. Com esse livro, a autora conquistou o Prêmio da Universidade de Bar-Ilan (Tel Aviv), em Israel.

Dos 69 poemas reunidos na antologia, 31 foram traduzidos por Moacir Amâncio e os demais por Gustavo Carvalho, Flavio Britto, Luca Argel, Maria João Cantinho, Maria Teresa Mota e Guilherme Gontijo Flores, também autor do prefácio.

Desses, onze peças traduzidas por Luiz Gustavo Carvalho e duas por Luca Argel contaram com a participação da autora, profunda conhecedora da Literatura Espanhola e Hispano-americana e que também conhece o idioma português.

Aliás, sua participação nas traduções já havia ocorrido por ocasião da publicação de seu livro de estreia no Brasil, O ponto da ternura (São Paulo, Editora Lumme, 2013), que teve 28 textos traduzidos por Moacir Amâncio e versões adicionais traduzidas por Maria Teresa Mota, Flávio Britto, Maria João Cantinho, Luiz Gustavo Carvalho e Luca Argel (as duas últimas com participação da autora).

Tal Nitzán já publicou sete livros de poesia: Doméstica (2002), Uma noite comum (2006), Café soleil blu (2007), A primeira a esquecer (2009), Olhar a mesma nuvem duas vezes (2012), Até o átrio interior (2015), em parceria com o artista israelense Tsibi Geva, e Atlântida (2019), que ganha agora sua versão em português.

É romancista, tradutora e editora. Nasceu em Jaffa, mas, filha de pais diplomatas, já morou em Bogotá, Buenos Aires e Nova York e, agora, reside em Tel Aviv.

É bacharel em História da Arte e Estudos Latino-Americanos e mestre em Literatura pela Universidade Hebraica de Jerusalém.

Recebeu diversos prêmios por sua obra, entre os quais o Prêmio Mulheres Escritoras, o Prêmio Ministro da Cultura de Israel para Jovens e Livro de Estreia, o Prêmio de Poesia da Universidade Hebraica e o Prêmio do Primeiro-Ministro de Israel para Escritores.

Traduziu para o hebraico obras de Jorge Luis Borges (1899-1986), Pablo Neruda (1904-1973), Octavio Paz (1914-1998) e Federico García Lorca (1898-1936), entre outros.

II

Da poesia de Tal Natzán, o que se pode dizer é que constitui uma das vozes mais expressivas da literatura escrita em hebraico hoje.

E que não perde a sua força e beleza lírica quando traduzida para outros idiomas. Trata-se de uma poesia que “nos atinge em português com essa lâmina de beleza”, como observa no prefácio o professor, poeta, tradutor e ensaísta Guilherme Gontijo Flores, doutor em Letras Clássicas pela USP, ao destacar que os seus poemas “têm um impacto maciço e sólido, um baque verdadeiro de linguagem sobre o corpo”.

É o que se pode comprovar no poema “Tesouro”: No inverno os guardas arrancaram o cobertor da / pele dos habitantes do jardim. Um deles não verá o dia. / Na primavera foram lançadas garrafas cegas / nas casas assinaladas, que se incendiaram. À noite busquei refúgio em teu corpo / como um menino se abriga na amoreira. / Ouvir somente a tua respiração / apoiar-me em ti da cabeça aos pés e por um instante / não ver nuvens de veneno e de ocaso / acumulando-se pesadas. /  Que mais te direi. / Que és na minha pobreza o tesouro oculto / que a mão deles não alcançará. / Que eu seja na tua pobreza o tesouro oculto / que o saber deles não alcançará.

De fato, em quase todos os poemas de Tal Nitzán o que transparece é um cenário de perdas.

Inconformada com a intransigência dos homens em não buscar um diálogo que faça do Oriente Médio um território de paz, a poeta mostra-se sempre uma testemunha veraz da instabilidade em que se vive na região, a ponto de ninguém saber se, daqui a alguns minutos, será vítima de um míssil ou de um desmoronamento provocado por bombas ou de uma bala perdida.

Como ativista política, mostra-se apenas a favor dos fracos e oprimidos, sem tomar partido de dirigentes israelenses ou palestinos.

Tanto que já organizou o livro Com caneta de ferro: poesia de protesto israelense 1984-2004, antologia que reúne textos que se opõem à invasão por Israel do território palestino.

Esse dia a dia terrível de quem vive no Oriente Médio pode-se respirar, por exemplo, através dos versos de “Khan Yunis” (título que remete a um subúrbio de Gaza, zona de conflito quase permanente): (…) Orgulho da família! Só tem dois anos / e já sabe gritar para a mamãe que se abaixe / quando os tiros voarem para dentro de casa. / ‘A janela da qual virá o vento, fecha e deita para descansar’, / tu citas, mas nossas balas eficientes, / atravessam portas, paredes, vidraças. Ao vento, oscila agora / a placa eivada de tiros / com tua advertência ingênua: / Atenção! Famílias moram aqui! Attention! Families live here! / E dos reservatórios furados / a água escorre pelas faces da casa.

Essa preocupação com o futuro dos inocentes também se sente em versos como os do poema “Cobertura”, no qual a poeta mergulha com olhos e alma na vertigem de um mundo alucinado e sua voz traduz a ânsia e o tormento de uma população que não sabe se o fim de sua existência pode estar logo ali, no fim da rua: Nesta hora escura / todas as crianças são iguais. Nesta treva basta a palavra “crianças” / para que se encolha de medo. / A boca do caminhão se escancara, Salima / Matria procura tesouros na imundície, / já estará enterrado no monte de lixo / cobertura, a mão busca os cobertores / enrolados em sua candidez, / cobertores que nem tinham caído. / Ahmed Zar´uma não subirá mais / no brinquedo do grande blindado, / seu coração agita-se no peito magro / sob o alvo do fuzil. Assim, com os pulsos sobre a cabeça, / o amor está amarrado ao terror.

III

Foto: Bar Gordon

Tal Natzán publicou também seis livros infantis e é autora de dois romances: Cada e toda criança (Achuzat Bayit, 2015) e O último passageiro (Am Oved, 2020).

Editou três antologias de poesia: duas são seleções de poesia latino-americana e uma, With an Iron Pen, coleção de poesia hebraica de protesto, que também saiu na Espanha, França e Estados Unidos.

Seus poemas foram traduzidos para mais de vinte idiomas e várias seleções de seu trabalho publicadas em inglês, alemão, espanhol, francês, português, italiano, lituano e macedônio. Adaptou ainda versões do romance Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), e peças de William Shakespeare (1564-1616) para jovens leitores.

É considerada a maior tradutora de literatura hispânica para o hebraico, trabalho que foi reconhecido com o Prêmio Tchernychovski de Tradução e a Medalha de Honra da Presidência do Chile por suas versões de poemas de Pablo Neruda. Traduziu para o hebraico também obras em prosa publicadas em inglês.

Foi editora de Latino, uma série de literatura latino-americana de traduções para o hebraico, e de Mekomi, que significa Local em hebraico, uma série livros de prosa hebraica original. Editou ainda a revista literária independente Orot (que quer dizer Luzes em hebraico). É fundadora e editora da revista literária online Ha-Mussach, que significa A Garagem, da Biblioteca Nacional de Israel.

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Atlântida, de Tal Nitzán, com prefácio de Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Editora Ars et Vita, 94 págs., R$ 45,00, 2022. E-mail: [email protected] Site: www.arsetvita.com

 

Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).  É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, LetraSelvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: [email protected]

 

 

 

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