Seffrin, um analista de fina imaginação | Boqnews

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09 DE NOVEMBRO DE 2023

Seffrin, um analista de fina imaginação

Por: Adelto Gonçalves

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I

Crítico e ensaísta que segue as pegadas de autores renomados como Massaud Moisés (1928-2018) e Wilson Martins (1921-2010), André Seffrin (1965) reuniu em O demônio da inquietude (Santarém, Portugal, Rosmaninho Editora de Arte, 2023) resenhas, memórias, apresentações de livros, crônicas, pequenos ensaios e prefácios publicados em três décadas de atividade literária, que inclui não só textos que saíram à luz em jornais impressos, revistas e sites como a organização de antologias e obras completas de grandes poetas e pensadores brasileiros.

Analista de fina imaginação e estilo em que se sobressai uma “linguagem limpa, clara, concisa, direta, rica de timbres e tonalidades”, como observou o poeta, memorialista, historiador, ensaísta e diplomata Alberto da Costa e Silva (1931), ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em Portugal, Seffrin oferece ao leitor um panorama da Literatura Brasileira e das artes visuais dos dois últimos séculos que equivale a um curso de Letras completo.

Na primeira seção da obra, o crítico analisa poetas do passado e do presente e aspectos da atividade poética das duas últimas décadas, abarcando autores fundamentais como Gregório de Matos Guerra (1636-1696) Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), Gonçalves Dias (1823-1864), Castro Alves (1847-1871), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Jorge de Lima (1893-1953), João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Rachel de Queiroz (1910-2003), Ferreira Gullar (1930-2016) e tantos outros ícones da literatura em língua portuguesa.

À guisa de ilustração, basta citar o fecho do prefácio que escreveu para Boitempo: menino antigo (Rio de Janeiro, Record, 2006), em que observa que neste livro e nos demais de Drummond “cabem Minas Gerais e o mundo, o arquétipo e o mito, o poeta com todos os seus instrumentos, sua matéria e sua música”.

Ou ainda o que diz no longo prefácio/ensaio que escreveu para Alberto da Costa e Silva: melhores poemas (São Paulo, Global, 2007): “Seus textos nos tomam pela mão e nos conduzem amorosamente pelos temas que propõem. São textos de um erudito que harmoniza encantação poética e generoso convívio humano, nos quais confluem o historiador-estilista, na linha de Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, e o puro estilista – como Machado de Assis e Raul Pompeia”.

E conclui: “Alberto da Costa e Silva, um poeta que, “entre muros de cinza, solidão e cansaço”, prefere se ver como “um cantor da relva mínima e dos bois”, sob o “mar do instante”. A memória acesa como um círio perfeito, poeta que canta o que a alma sente”.

II

Como se constata desde já, as análises de Seffrin, em geral certeiras, partem de perspectivas históricas bem fundamentadas, que colocam o leitor diante de um analista que parece que leu e estudou como ninguém, praticamente, todos os autores da Literatura Brasileira.

Em cada análise que faz, percebe-se não só um envolvimento amoroso do autor com os temas propostos, como o compromisso de não escrever por escrever, mas de pensar bem.

Enfim, um ensaísta de fina e profunda imaginação.

Mais: um analista que não se deixa levar apenas pelo que outros críticos já haviam lido e analisado, mas que se preocupa em resgatar autores importantes que, por alguma razão insuspeita, ficaram no limbo da História, como o poeta e romancista cearense José Alcides Pinto (1923-2008), a quem conheceu pessoalmente.

Dono de uma bibliografia com cerca de 50 livros em vários gêneros, da poesia ao romance, do conto ao teatro, da crítica ao ensaio, Alcides Pinto não chegou a ser muito conhecido no eixo literário São Paulo-Rio de Janeiro, embora o seu poema em homenagem a Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) tenha arrancado elogios de um crítico cáustico e exigente como Wilson Martins.

Neste extenso poema, que Seffrin considera merecer figurar em nossas antologias mais importantes, diz Alcides Pinto: “(…) Você, meu caro Schmidt, não é outra cousa, senão um grande poeta./ Talvez, por isso, Bandeira tenha me emprestado alguns versos./ Por isso, todo o vocabulário de minha poesia é seu.// Tudo se quebra dentro de mim, se estilhaça, como uma parede velha larga o seu reboco/ aos golpes do vento, ou ao simples toque de dedos frágeis./Tudo se quebra dentro de mim, se tento escrever um verso./ Assim choram as pedras, quando o fogo arde em seu coração.// Matem. Assassinem o milionário, o capitalista-banqueiro./ E salvem o poeta-cidadão Augusto Frederico Schmidt. (…).

Outro poeta que Seffrin resgata neste livro é Mário Pederneiras (1867-1915), astro do Simbolismo brasileiro, que à época teve a coragem de ir contra a maré do preciosismo métrico.

E a quem Massaud Moises dedicou dez páginas em sua História da literatura brasileira, ao lado de Cruz e Sousa (1861-1898), Emiliano Pernetta (1866-1921), Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) e Eduardo Guimaraens (1892-1928), como lembra Seffrin.

III

Na seção seguinte, Seffrin trata dos prosadores mais importantes da literatura brasileira, resgatando nomes como Aluísio de Azevedo (1857-1913), José Américo de Almeida (1887-1980), Samuel Rawet (1929-1984) e Antônio Torres (1885-1934), o mineiro, para distingui-lo de Antônio Torres (1940), o baiano, ainda em grande atividade, nome também importante na história literária nacional, que ganha um texto irrepreensível na seção seguinte em que são recolhidos textos sobre mais alguns prosadores, como o luso-brasileiro Cunha de Leiradella (1934). Do Antônio Torres mineiro, avisa ao leitor o quão importante é relê-lo hoje “como o clássico que é, nesse modo muito seu de encarar a crônica como instantâneo do cotidiano”.

Nas demais seções, o leitor irá encontrar textos sobre enciclopedistas e ensaístas, além de análises sobre a produção de artistas plásticos, como Candido Portinari (1903-1962), Claudio Tozzi (1944) e Gonçalo Ivo (1958) e o fotógrafo santista Juan Esteves (1957).

Por fim, o prolífico Seffrin resgata dois textos memorialísticos: no primeiro, recupera suas lembranças pessoais de Fausto Cunha (1923-2004), jornalista, crítico literário e escritor, a quem define como “um dos homens que mais honraram o Brasil no século XX”; e de Wilson Martins, professor, historiador e crítico literário, a quem o autor diz dever muito do que é hoje, pois foi através de sua História de inteligência brasileira e de outras dezenas de títulos seus, a  que teve acesso ainda jovem,  que descobriu o prazer de viver entre livros e que, mais tarde, acabou por possibilitá-lo viver profissionalmente de literatura, coisa rara em terras brasileiras.

IV

André Seffrin nasceu em 1965, em Júlio de Castilhos, pequena cidade do Rio Grande do Sul, onde passou a infância.

Durante onze anos viveu no Paraná e em 1987 fixou residência no Rio de Janeiro.

Ensaísta, organizador de cerca de 35 antologias e pesquisador independente, escreveu cerca de duas centenas de apresentações, prefácios e posfácios para edições de escritores brasileiros clássicos e contemporâneos.

Autor de ensaios críticos e biográficos, alguns em edições de arte (Joaquim Tenreiro, Paulo Osorio Flores, Sérgio Rodrigues), foi também colaborador de jornais e revistas (Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Globo, Manchete, Gazeta Mercantil, EntreLivros etc.) e coordenou coleções de literatura para diversas editoras.

Atuou também como editor-executivo e, eventualmente, crítico de artes visuais.

Ganhou o Prêmio Jabuti por duas vezes, em 2017 e 2018, respectivamente pelos livros Caixa Rubem Braga: crônicas (categoria contos e crônicas) e O poeta e outras crônicas de literatura e vida (categoria crônica). Ambos os livros são reuniões de textos variados do cronista Rubem Braga.

Em 2021, publicou como organizador a obra Revolta e protesto na poesia brasileira: 142 poemas sobre o Brasil (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira), na qual procurou traçar um quadro de um país abandonado à própria sorte, o Brasil desde tempos imemoriais até este começo de século XXI, através da poesia, reunindo poemas de 78 autores diversos, de Gregório de Matos Guerra aos nossos dias.

São poetas que procuram traduzir “as vozes de um povo que sempre buscou caminhos para se tornar menos refém dos perpétuos desgovernos em cujas engrenagens nos enredamos desde o mais remoto passado”, como se lê no texto de apresentação da obra.

Participou também do livro Rio, da Glória à Piedade (Rosmaninho Editora de Arte, 2023), organizado por Hélio Brasil, com o texto de memórias “Miúda crônica de saudades com véu de alegoria”

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O demônio da inquietude e outros recortes hiperbólicos: ensaio, crítica, jornalismo literário, crônica, memória, de André Seffrin. Santarém-Portugal: Rosmaninho Editora de Arte, 15,75 euros, 2023. Site: www.rosmaninhoeditoradearte.com E-mails: [email protected] [email protected]

 

 

Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: [email protected]

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