Mudanças x Conformismo | Boqnews

Opiniões

29 DE MARÇO DE 2024

Mudanças x Conformismo

Adilson Luiz Gonçalves

array(1) {
  ["tipo"]=>
  int(27)
}

Martinho da Vila gravou, em 1975, a música “Cresci no morro”.

Era autobiográfica, pois a letra contava: “Eu cresci no morro e me criei na cidade. Saí do submundo e penetrei no seio da alta sociedade”.

Só errou o tom ao usar a palavra submundo.

Aí, em 1994, Cidinho e Doca gravaram “Eu só quero ser feliz”, que pode ser considerada uma antítese à música de Martinho, quando afirma: “Eu só quero é ser feliz. Andar tranquilamente na favela onde eu nasci.

E poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem o seu lugar”, como se essa condição fosse imutável.

Martinho mudou do morro para a cidade e melhorou sua vida, ao que consta.

Não que viver numa comunidade não permita que se tenha uma boa vida.

Mas é preciso diferenciar o que é opção de falta de opção, e o que é buscar melhores condições e sucumbir ao comodismo ou, pior, à resignação.

As ocupações irregulares são comumente decorrentes de problemas socioeconômicos, se bem que há exemplos de oportunismo mal-intencionado, inclusive político.

A falta de condições financeiras acaba levando pessoas a ocuparem morros, várzeas e áreas cujo zoneamento urbano e legislação ambiental são incompatíveis com o uso residencial.

Com isso, acabam se expondo a riscos de toda a espécie.

O incêndio da “Vila Socó”, em 1984, e os recentes deslizamentos de encostas de morros são tristes exemplos, na Baixada Santista, que se repente em outras cidades brasileiras.

Consolidar essas comunidades nessas condições impróprias tende a isolá-las, a criar guetos.

Mesmo não havendo restrições à mobilidade física, o efeito psicológico pode gerar revolta ou vitimização; e a eventual boa intenção pode induzir ao comodismo e ao assistencialismo, limitando escolhas.

Lembro de um programa de TV que entrevistou uma moradora do Centro de Santos.

Ela apontou para os prédios da orla afirmando que eram qual uma “barreira”, sendo que nada físico impedia seu direito de ir e vir.

Os programas habitacionais visam contornar esse problema, mas os terrenos disponíveis normalmente estão distantes das fontes de trabalho, obrigando a longos deslocamentos, prejudicando significativamente a qualidade de vida.

Esse distanciamento, além da questão da mobilidade urbana, também prejudica a prestação de serviços públicos de saúde, educação e segurança.

Pior, potencializam a atuação de um “estado paralelo”: milícias e facções criminosas. Exemplos não faltam.

Na busca por alternativas para evitar esse distanciamento físico e social, surgiram soluções como o repovoamento de antigos centros urbanos e disponibilização de terrenos mediante permuta ou compensações de empreendimentos privados.

O adequado é que essas áreas sejam compatíveis com usos residenciais e mistos, para haver efetiva integração social, serviços públicos de qualidade e empregos.

Quando essas soluções ocorrem ou são potencializadas deveriam ser celebradas e apoiadas por quem é efetivamente interessado na solução de problemas sociais, sem populismo ou proselitismo.

Iniciativas externas que propõem ou impõem a consolidação de ocupações irregulares, com a justificativa de manter as relações de afinidade ali construídas, podem parecer humanistas, altruístas, mas podem ser incoerentes com a realidade de quem as sugere.

Será que quem defende ou concorda com essa tese nunca mudou de bairro ou cidade?

Se seus filhos puderem ter melhores condições de vida em outro local, negar-lhes-á essa oportunidade, em nome da manutenção de laços com a comunidade onde vivem, por uma decisão ou convicção pessoais?

Martinho da Vila mostrou que mudanças podem ser benéficas, enquanto Cidinho e Doca sintetizaram uma “utopia” conformista.

Aceitar a mudança, como oportunidade de uma vida melhor, ou se curvar à “felicidade” do conformismo? Eis a questão.

 

Adilson Luiz Gonçalves é escritor, engenheiro, pesquisador universitário e membro da Academia Santista de Letras

Notícias relacionadas

ENFOQUE JORNAL E EDITORA © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

desenvolvido por:
Este site usa cookies para personalizar conteúdo e analisar o tráfego do site. Conheça a nossa Política de Cookies.